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A partir do colapso, um novo campo
popular precisa ser reconstruído. Desprivatizar a política e reinventar a
democracia são objetivos centrais. Mas como?
Por Gonzalo Berrón
Desprivatizar a Democracia – Debate
presencial sobre o tema–
Duas conjunturas no Brasil
nos convocam a falar sobre democracia: o golpe branco à presidenta Dilma
Rousseff e ao projeto político
expresso por ela; e a iminência, nesse contexto, de um processo de eleições
locais. A essa conjuntura nós acrescentamos um fenômeno contemporâneo que
contribui para a perversão da democracia e a mergulha nessa crise atual: a sua
privatização. Antes de retomar os primeiros dois elementos da conjuntura, nos
ateremos brevemente nesse último fenômeno.
Consideramos a democracia o mais comum dos bens comuns das
sociedades modernas. É por meio do seu exercício que as pessoas constroem a
vontade coletiva e a visão do que é o bem comum, ou o interesse geral da
comunidade em que habitam. Mas a forma pela qual a democracia é exercida hoje facilita
a sua captura por interesses particulares, especialmente – mas não apenas –
pelos interesses econômicos. Essa captura, que se realiza de diversas formas,
acaba transformando-a em um mecanismo “privado”, cuja consequência é o fenômeno
da “privatização da democracia”.
A democracia, assim, em vez de
promover o bem comum, passa a gerar leis, normas, e todo tipo de decisões
públicas que beneficiem os interesses privados. No contexto das nossas
economias de mercado, os atores econômicos possuem capacidade extra de
privatizar os mecanismos da democracia (a começar pelas eleições, mas passando
também pela influência legislativa, jurídica e executiva). Essa capacidade extra
é derivada do fato de que as campanhas políticas são, em grande parte, deixadas
nas mãos da concorrência quase selvagem dos diversos candidatos às vagas
públicas. No “mercado” da política, os mais competitivos são aqueles que podem
mobilizar mais recursos econômicos. Não é que o projeto e/ou as habilidades
retóricas ou carisma não importem, mas sim que essas qualidades podem ser
neutralizadas – ou esmagadas – por máquinas publicitárias ou exércitos de
militantes mercenários invadindo os espaços de disputa corpo-a-corpo ou as
redes sociais, hoje tão utilizadas na contenda política pública e eleitoral.
O que é certo é que o resultado da “democracia privatizada” é
desolador para a sociedade, em particular, é claro, para os setores que menos
possuem, pois esses têm menos chances de colocar seus candidatos “pobres” nas
arenas custosas das campanhas eleitorais. Quem é eleito? São eleitos os
candidatos ricos – que podem ganhar porque podem custear uma campanha por conta
própria; ou os candidatos apoiados pelos ricos; ou os candidatos que fazem
acordos com empresas ou pessoas que podem bancar a campanha. Uma situação
adicional que não altera em nada o raciocínio, mas, pelo contrário, o reafirma,
é a de candidatos que “investem” e/ou se endividam para concorrer nas eleições.
De um jeito ou de outro, e com algumas diferenças do conceito apresentado por
Max Weber no começo do século 201, a democracia
se torna uma “plutocracia”, ou seja, um governo dos ricos, ou dos seus
representantes.
Em todos esses casos, o que o sistema democrático gera é de uma
perversidade estarrecedora: gestores públicos que devem favores ou dinheiro e
cuja gestão pública estará orientada ou, no mínimo, condicionada por essa
realidade. Gestores públicos que vão atuar para pagar a campanha passada e
ganhar favores para a futura. Gestores públicos ricos que, sem estar
endividados, provavelmente governarão com a visão dos poderosos e dos que têm,
e não dos que necessitam. Corrupção e favores de todo tipo são o ingrediente
final desse coquetel explosivo que configura a privatização da democracia
contemporânea.
O Brasil é um
exemplo perfeito do que estamos falando. Não precisamos citar casos
específicos, mas sim definir o futuro que queremos para a nossa democracia, e
aqui retomamos a abertura dessa coluna. O coquetel “golpe” + “privatização” tem
jogado o interesse e a confiança das pessoas no sistema democrático para o
último canto de suas almas. O problema é que o sistema democrático atual
promove a eleição desses políticos que, “privatizados”, se movimentam pelo
interesse particular, não geral. O governo do PT, ao ser conivente com essas
práticas, perdeu a moral para explicar a quase impossível harmonia entre o
fazer para todos e o fazer para se manter no Estado, graças ao Estado.
A proibição das
doações empresariais de campanha representa alguma melhoria, mas não transforma
a situação de forma radical. O rico ainda tem mais chances de concorrer, os
doadores individuais ricos têm mais chances de influenciar ou propor os seus
próprios candidatos, e nada impede que um candidato se endivide para ser
competitivo na eleição…
No nosso
entendimento, e aqui chegamos por fim às eleições locais, temos agora a
primeira oportunidade depois do golpe de lançar o debate sobre a democracia que
queremos sem nenhum tipo de compromisso “de governo”: pensar a democracia que
queremos e como articular essas vontades e ideias que se constroem como filhas
da nossa realidade e das nossas lutas, e que farão parte dos ideais e propostas
do campo popular que começa a ser construído – e reconstruído – a partir do
colapso provocado pelo golpe. Valorizar a democracia hoje, voltar a dotá-la de
sentido emancipador, só será possível se conseguimos “desprivatizá-la”.
Se nas nossas
sociedades modernas a democracia é o mais comum dos bens comuns, não pode ser
largada às mãos do mercado. Os efeitos nós já vimos quais são. Não adianta ter
uma Justiça Eleitoral que funcione como “agência reguladora” do mercado
político, encarregada da tramitação dos comícios e de impor algumas regras à
concorrência entre os candidatos, que não conseguem evitar – e talvez até
promovam – as perversões de que falamos acima.
Nós achamos que
a noção de bem comum demanda da sociedade uma abordagem diferente, que
considere os mecanismos “competitivos” da eleição como sendo inteiramente
públicos, e não sujeitos às possibilidades irarias dos competidores. Um sistema
de eleições entendido como “serviço público” – ou seja, o serviço de escolha
das pessoas que vão gerir a coisa pública – tem que ser “universal”, organizado
e financiado pelo Estado. As eleições não deixam de ser competitivas, elas o
são em termos de projetos, propostas, identidade, simpatia ou habilidades
retóricas, mas essencialmente igualitárias, pois todos/as terão possibilidade
de concorrer. Nos tempos das comunicações eletrônicas, isso não parece tão
complexo.
Ao mesmo tempo,
conceber a democracia como um comum implica também um movimento “desde abajo”.
Sem que a sociedade se aproprie do que é de todos/as, sem que radicalizemos e
reinventemos a participação, não haverá forma de os cidadãos se apropriarem da
gestão da coisa pública.
Começar a
construir formas de “desprivatização” da democracia no âmbito das cidades,
portanto, é a primeira tarefa que se apresenta aos candidatos que almejam
representar a renovação do campo popular. - http://outraspalavras.net/brasil/
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