Sozinhas, 700 mil pessoas —
0,36% da população — têm patrimônio igual a 45% do PIB. E pagam, quase sempre,
impostos mais baixos que os dos assalariados.
Por Evilásio Salvador – http://outraspalavras.net/
O Brasil tem um dos mais injustos sistemas tributários do mundo e uma
das mais altas desigualdades socioeconômicas entre todos os países. Além disso,
os mais ricos pagam proporcionalmente menos impostos do que os mais pobres,
criando uma das maiores concentrações de renda e patrimônio do planeta. Essa
relação direta entre tributação injusta e desigualdade e concentração de renda
e patrimônio é investigada no estudo Perfil da Desigualdade e da
Injustiça Tributária, produzido pelo Instituto de Estudos
Socioeconômicos (Inesc) com apoio da Oxfam Brasil, Christian Aid e Pão Para o
Mundo. Tive o privilégio de conduzir a pesquisa e redigir sua versão final.
Foram considerados os quesitos de sexo, rendimentos em salário mínimo e
unidades da Federação. O texto busca identificar o efeito concentrador de renda
e riqueza, a partir das informações sobre os rendimentos e de bens e direitos
informados à Receita Federal pelos declarantes de Imposto de Renda no período
de 2008 a 2014.
Os dados da Receita Federal analisados para o estudo revelam uma casta
de privilegiados no país, com elevados rendimentos e riquezas que não são
tributados adequadamente e, muitas vezes, sequer sofrem qualquer incidência de
Imposto de Renda (IR). Por exemplo: do total de R$ 5,8 trilhões de patrimônio
informados ao Fisco em 2013 (não se considera aqui a sonegação), 41,56%
pertenciam a apenas 726.725 pessoas, com rendimentos acima de 40 salários
mínimos. Isto é, 0,36% da população brasileira detém um patrimônio equivalente
a 45,54% do total. Considera-se, ainda, que essa concentração de renda e
patrimônio está praticamente em cinco estados da federação: São Paulo, Rio de
Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraná, agravando ainda mais as
desigualdades regionais do país.
Um sistema tributário injusto amplia — ao invés de amenizar — esta
desigualdade. Um dos fatos mais graves é que a tributação sobre a renda no Brasil
não alcança todos os rendimentos tributáveis de pessoas físicas. A legislação
atual não submete à tabela progressiva do IR os rendimentos de capital e de
outras rendas da economia. Elas são tributadas com alíquotas inferiores à do
Imposto de Renda incidente sobre a renda do trabalho. Não existe Imposto de
Renda Retido na Fonte sobre os lucros e dividendos. Um dispositivo legal (mas
excêntrico) — o dos “juros sobre capital próprio” — permite uma redução da base
tributária do IR e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido. Esses
rendimentos são tributados a 15% de forma exclusiva, não necessitando o
beneficiário fazer qualquer ajuste na Declaração Anual do IR. A consequência
chega a ser bizarra: os 71.440 declarantes hiper-ricos, que tinham renda acima
de 160 salários-mínimos em 2013, praticamente não possuíam rendimentos
tributáveis, pois 65,80% de sua renda tinha origem em rendimentos isentos e não
tributáveis.
O estudo aponta ainda que os contribuintes com rendas acima de 40
salários mínimos representam apenas 2,74% dos declarantes de IR, mas se
apropriaram de 30,37% do montante dos rendimentos informados à Receita Federal
em 2013. Além disso, dos R$ 623,17 bilhões de rendimentos isentos de Imposto de
Renda em 2013, R$ 287,29 bilhões eram de lucros e dividendos recebidos pelos
acionistas. Se submetidos à alíquota máxima da atual tabela progressiva do
Imposto de Renda (27,5%), esses recursos gerariam uma arrecadação tributária
extra de R$ 79 bilhões ao Brasil.
As informações tornadas públicas pela Receita Federal, a partir da
disponibilização da base de dados “Grandes Números das Declarações do Imposto
de Renda das Pessoas Físicas”, contribuem para uma maior transparência sobre a
questão tributária no país, que há tempo ocupa lugar na agenda pública das
propostas de reformas. Os dados ampliaram um novo olhar sobre a desigualdade
social no Brasil e reforçam ainda mais a injustiça tributária no país. Até
mesmo o Imposto de Renda, que deveria ser o fiador de um sistema tributário
mais justo, acaba contribuindo para maior concentração de renda e riqueza em
nosso país.
Com isso, as propostas para a reforma tributária que diversas
organizações da sociedade civil — inclusive o Inesc — já apresentaram na agenda
pública brasileira estão na ordem do dia. É necessário revogar algumas das
alterações realizadas na legislação tributária infraconstitucional após 1996,
que sepultaram a isonomia tributária no Brasil, com o favorecimento da renda do
capital em detrimento da renda do trabalho. Dentre essas mudanças destacam-se:
1) o fim da possibilidade de remunerar com juros o capital próprio das
empresas, reduzindo-lhes o Imposto de Renda e a CSLL; e 2) o fim da isenção de
IR à distribuição dos lucros e dividendos na remessa de lucros e dividendos ao
exterior e nas aplicações financeiras de investidores estrangeiros no Brasil.
Outra medida fundamental seria a implementação do Imposto sobre Grandes
Fortunas (IGF), previsto na Constituição e não regulamentado até hoje. É uma
oportunidade para a prática da justiça tributária, por aplicar corretamente o
princípio constitucional da capacidade contributiva, onerando o patrimônio dos
mais ricos no país. Igualmente necessária é a introdução da progressividade no
Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doação de quaisquer Bens ou Direitos
(IT-CDM). Outras medidas importantes são a tributação maior para bens
supérfluos e menor para produtos essenciais para a população.
Uma proposta de reforma tributária no Brasil deveria ser pautada pela
retomada dos princípios de equidade, de progressividade e da capacidade
contributiva no caminho da justiça fiscal e social, priorizando a
redistribuição de renda. As tributações de renda e do patrimônio nunca ocuparam
lugar de destaque na agenda nacional e nos projetos de reforma tributária após
a Constituição de 1988. Assim, é mais do que oportuna a recuperação dos
princípios constitucionais basilares da justiça fiscal (equidade, capacidade
contributiva e progressividade). A tributação é um dos melhores instrumentos de
erradicação da pobreza e da redução das desigualdades sociais, que constituem
objetivos essenciais da República esculpidos na Constituição Federal de 1988.
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