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Encenação de “Arlequim, servidor de dois senhores”, de Carlo Goldoni |
Conservadores “denunciam” corrupção do Congresso,
mas pedem que corruptos liquidem direitos do povo. Outras Palavras lança novo
site, para informar em profundidade sobre uma luta crucial
Por Antonio Martins
Às vezes, diz o brocado, é mais fácil pegar um mentiroso que um coxo.
Nos últimos dois anos, os conservadores brasileiros surfaram na onda do
sentimento anti-establishment que percorre o planeta. Deram-lhe conteúdo reacionário. Em maio,
derrubaram um governo que ensaiava reformas sociais tímidas porém inéditas –
acusando-o de responsável por práticas de corrupção que marcam a história do
país há séculos. Promoveram uma série inédita de ataques aos direitos sociais,
aos serviços públicos e às liberdades democráticas. Governam como saqueadores,
loteando o Estado e desmantelando as políticas públicas. Agora, quando começa a
ficar claro que o resultado é o aprofundamento da crise, do desemprego e do
empobrecimento, jogam a cartada do punitivismo. Convocam a população às ruas
para pressionar por “dez medidas” que, se aprovadas, nos aproximarão ainda mais
de um Estado Policial. Investem contra o Congresso Nacional. Ao fazê-lo, no
mesmo momento em que o Palácio do Planalto tenta aprovar a “Reforma” da
Previdência, arriscam-se a um enorme passo em falso, capaz de comprometer o
conjunto de sua estratégia.
É que a manobra revela o caráter farsesco de seu “ataque” ao establishment. O sistema político
brasileiro está, de fato, minado pela corrupção. As delações dos executivos da
Odebrecht sugerem que só esta empresa – uma das dezenas que praticam
permanentemente lobbyno Congresso –
financiava e cobrava favores de cerca de metade (300) dos 594 deputados e
senadores senadores. Mas como “denunciar” os corruptos e defender, ao mesmo
tempo, que eles continuem governando e investindo contra os direitos da
maioria?
É exatamente este o movimento em curso. Ontem, os noticiários da TV
Globo e Globo News exortavam a população a ir às ruas contra parlamentares
desonestos. A partir de hoje, as duas emissoras pedirão que estes mesmíssimos
senhores invistam contra direitos históricos do povo. Hipocrisia idêntica é
praticada pelos blogs (Spotnik e O Antagonista, por exemplo) ligados a movimentos como o MBL e Vem pra Rua. O pacote
de maldades é vasto. Não se trata de uma reforma, mas de um autêntico desmonte da Previdência – talvez o único
esboço de Estado de Bem-Estar Social que as maiorias conseguiram arrancar das
elites, num dos países mais desiguais do mundo.
O tempo mínimo necessário para obter aposentadoria aumentará – em alguns
casos, em até dez anos. A regra valerá inclusive para os que já ingressaram no
mundo do trabalho, numa clara violação do princípio do direito adquirido. O
próprio valor do benefício cairá em relação aos valores já minguados de hoje —
exceto para os que acumulem, no momento da retirada, cinquenta anos de
contribuições. As aposentadorias rurais e dos idosos deixarão de acompanhar o
salário-minimo, o que as tornará irrisórias em pouco tempo. As pensões por
morte serão achatadas. A lista completa teria 17 itens, todos retrógrados e
impopulares.
Não se trata de propostas de difícil compreensão, como no caso da PEC
241/55. Serão sentidas por milhões. Têm sentido oposto ao defendido por
Dilma e Temer, em 2014. Sequer foram cogitadas por Aécio Neves, o segundo
colocado nas eleições. Como impô-las? Comprando maioria num Congresso “de
corruptos”?
Recorre-se nesse ponto à arma onipresente da ideologia. A contrarreforma
não seria opção política, mas fatalidade técnica. O atual sistema teria se
tornado inviável, por acumular déficits constantes e crescentes. O “ajuste”
visaria, na verdade, evitar sua quebra certa. Estas fórmulas serão repetidas
mil vezes, nos próximos dias, talvez para testar de novo a hipótese de
Goebbels, sobre os meios para transformar mentiras em verdades…
Outras Palavras lançou um novo
site, dedicado à defesa da Seguridade Social. Chama-se
Previdência – Mitos e Verdades. Pode ser encontrado em www.outraspalavras.net/previdencia Seus objetivos políticos são claros: contribuir para desmascarar a
“reforma” do governo e, num sentido mais amplo, a farsa em que se apoia a atual
ofensiva conservadora. Seus métodos são os que procuramos praticar em toda
nossa atividade jornalística. Investigação e análises profundas. Recusa à
superficialidade e ao panfleto. Confiança na autonomia e espírito crítico dos
leitores.
Para fazê-lo, mobilizamos três jornalistas tarimbados e sagazes – Glauco
Faria, Patrícia Cornils e Nicolau Soares – e uma designer e editora de vídeos
criativa – Gabriela Leite. Em defesa da Previdência e Seguridade Pública, eles
examinarão o sistema atual e suas características. Mostrarão que, ao contrário
do que alegam os conservadores, é preciso ampliar (e não reduzir) os benefícios, para construir uma sociedade um pouco
menos injusta. Argumentarão que, para isso, as reformas necessárias são de
sentido oposto às propostas pelo governo. Tributar os mais ricos, sempre
poupados por nosso sistema tributário. Eliminar isenções (por exemplo, as que
beneficiam o agronegócio). Rever privilégios: é aceitável reduzir a
aposentadoria dos trabalhadores rurais e dos idosos e manter as pensões de marajás
dos deputados e juízes?
Criado a partir de um projeto de Outras Palavras, o novo site já tem um primeiro apoiador: a Central dos Trabalhadores Brasileiros, (CTB). Seu aporte
material permitiu formar a equipe e lançar a inicitavia A cláusula de
independência editorial é pétrea. Eventuais erros e insuficiências em nosso
trabalho são de responsabilidade exclusiva de Outras Palavras. Para uma batalha
tão dura, queremos ampliar o leque de apoiadores. Além de outras centrais
sindicais, ele pode incluir organizações e pessoas empenhados em lutar pelos
direitos sociais e em reverter a maré conservadora que entristece o Brasil.
Como é também marca registrada de nosso trabalho, a prestação de contas será
pública.
Uma era – a Modernidade – está morrendo. As velhas relações sociais,
econômicas e políticas tornam-se rapidamente obsoletas. O novo pode ser muito
melhor ou pior, frisa Immanuel Wallerstein, mas não há volta atrás. Em meio à
tempestade, chegaremos a um porto seguro? Não podemos saber de antemão,
seguiremos navegando.
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