Supersalários: o
caso do Ministério Público em SP
Quase
80% dos promotores e procuradores recebem mais que o “teto” de R$ 33,7 mil.
Privilégios como auxílio-moradia são pagos sem comprovação. Vencimentos podem
ultrapassar R$ 110 mil.
Em setembro, o governo de São Paulo encaminhou para a Assembleia
Legislativa do Estado a proposta de orçamento do Ministério Público (MP) para
2017. A previsão é destinar R$ 2,3 bilhões para manter funcionando a estrutura
criada para defender os direitos dos cidadãos paulistas. Um orçamento três
vezes maior do que o previsto para a Secretaria de Cultura e o dobro do que
será destinado para pastas como Agricultura, Meio Ambiente ou Habitação. É com esse
dinheiro que o MP vai cobrir gastos com água, luz, telefone, salários – e os
polpudos benefícios destinados a procuradores e promotores.
A remuneração
inicial de um promotor público em São Paulo é de R$ 24.818,71. Na última etapa
da carreira, o procurador de justiça, o salário chega a R$ 30.471,11. São
valores que seguem o teto constitucional: promotores e procuradores paulistas
recebem, no máximo, 90,25% do salário de um ministro do Supremo Tribunal
Federal.
Mas os
vencimentos não terminam por aí. Somam-se benefícios como vale-alimentação,
auxílio-moradia, auxílio-livro, auxílio-funeral, pagamento de diárias,
remunerações retroativas, duas férias anuais. A Lei Orgânica do Ministério
Público de São Paulo, de 1993, prevê 16 auxílios extras que, apesar de serem
considerados legais, ajudam a ultrapassar, em muito, o teto constitucional.
Na
prática, dos 2015 membros do MPSP que receberam salário em outubro, 1243 receberam a partir
de R$
38,900, ou seja, 61,7% do total. É um valor acima dos R$ 33.763 pagos
aos ministros do STF, mais os extras. Se prosperar o entendimento de que
“teto é teto” e os “extras” não deveriam estar nem na conta dos
ministros do Supremo, a proporção de promotores e procuradores que receberam
acima do teto constitucional sobe para 79,8%. Foram 1.608 promotores e
procuradores que receberam mais do que o salário teto de R$ 33.736. A Comissão foi instalada, em novembro,
no Congresso Nacional, para propor um fim aos “supersalários” de funcionários
públicos.
A folha de pagamento do MPSP de outubro é repleta de exemplos de
“supersalários”. Naquele mês o promotor de justiça de entrância final Milton
Theodoro Filho, lotado na capital, recebeu o maior valor da folha: R$
129.469,78. Foram R$ 28.947,55 de salário bruto (sem descontar a contribuição
previdenciária e o imposto de renda) e R$ 89.979,35 de indenizações (incluídos
R$ 5.087,73 auxílio-moradia e vale-alimentação). Além disso, há mais R$
9.179,62 de valores retroativos da Parcela Autônoma de Equivalência (PAE),
resultado de uma decisão de 1992 do Supremo Tribunal Federal (STF) que equipara
os salários do Judiciário com os do Congresso Nacional.
No mesmo mês, o promotor Julio César Palhares, que serve em Bauru, no
interior paulista, recebeu R$ 118.480,60. Desse montante, R$ 28.947,55
referem-se ao salário bruto, R$ 82.281,19 a indenizações não discriminadas, à
exceção de R$ 5.087,73 de auxílio-moradia e vale-alimentação.
Orlando Bastos Filho, promotor em Sorocaba, foi o terceiro membro com
maiores vencimentos no mês, recebendo R$ 107.025 brutos. Nesse valor estão
incluídos R$ 64.901,22 de indenizações não discriminadas e R$ 7.864,41
retroativos da PAE. Em 2015, Bastos Filho acirrou os ânimos dos vereadores do
município ao iniciar uma investigação sobre seus gastos com despesas de
telefone, carro oficial e itens de escritório.
O professor de ética e filosofia política na Unicamp Roberto Romano
estuda o poder Judiciário e defende o papel do MP como instituição de garantia
da democracia brasileira. Mas critica: “Eu acho que o Ministério Público,
justamente porque é o zelador da lei, o fiscal da aplicação da lei, deveria
renunciar a esse tipo de acréscimo ao seu salário, sobretudo porque não
corresponde à experiência de todos os demais funcionários do estado”.
As informações sobre os rendimentos dos membros do MP estão disponíveis
no Portal da Transparência. Para Antônio Alberto Machado, promotor aposentado,
as altas remunerações do MP estão diretamente associadas a práticas
conservadoras: “As carreiras jurídicas, em geral, se tornaram muito atrativas
de algumas décadas para cá. Há 40 anos não era assim. Isso fez com que os
membros dessas carreiras tivessem um padrão remuneratório equivalente ao que a
gente chama de classe A. A leitura que eu faço é que essas carreiras jurídicas
estão ‘sitiadas’. Foram tomadas por essas classes média, média alta, classe
alta que têm um valor de mundo conservador e que estão julgando as classes de
baixo”.
Promotores e procuradores têm a prerrogativa de legislar sobre os
próprios vencimentos. Alguns dos valores e critérios para o pagamento de cada
um desses extras são definidos por resoluções e atos normativos que cabem ao
procurador-geral de justiça do estado. Foi um ato normativo de 2003 que
definiu, por exemplo, que o valor de uma diária corresponde a 1/30 do salário
bruto de um promotor em início de carreira. Em 2016, corresponde a R$ 827,30. O
valor extra é pago quando o promotor tem de substituir um colega de trabalho.
No ato normativo de 2014 definiu que promotores e procuradores cedidos
para outros órgãos continuam tendo direito a receber o auxílio-moradia.
Trata-se de um complemento à lei orgânica que já garante que membros do MP que
se afastem do cargo para ocupar cargos eletivos, por exemplo, possam continuar
recebendo os vencimentos do órgão se abrirem mão do outro salário. É o que
garante ao deputado Fernando Capez continuar na folha de pagamento do MP. A
troca vale a pena. Enquanto um deputado estadual tem remuneração de R$
25.322,25, os vencimentos de Capez em outubro chegaram a R$ 40.497. Como
secretários do governo de São Paulo, os procuradores Mágino Barbosa e Elias
Rosa receberiam R$ 19.467,94. Porém, ao manterem os salários do MP, eles
receberam, em outubro, respectivamente R$ 56.911,63 e R$ 47.685,94.
Auxílio-moradia
O maior benefício é o auxílio-moradia, no valor de R$ 4.377 mensais. A
ajuda financeira foi autorizada por meio de liminar do ministro do STF Luiz Fux
em setembro de 2014 e se estende a membros da magistratura e dos ministérios
públicos de todo o país. À diferença do que ocorre com todos os outros
funcionários públicos – até mesmo dos congressistas –, o benefício se destina
também para quem tem residência própria e vive na mesma cidade em que atua.
Ficam de fora apenas aposentados e licenciados.
Segundo a folha de pagamento de outubro de 2016, disponível no Portal da
Transparência do MPSP, dos 2.084 promotores e procuradores públicos na ativa,
pelo menos 1.593 recebem o auxílio (76%). O custo anual para os cofres públicos
é de aproximadamente R$ 69,7 milhões. O valor daria para atender mais de 14 mil
famílias com o programa Auxílio-Aluguel da prefeitura de São Paulo, de R$ 400
mensais.
Mas a despesa não fica por aí. O adicional foi tratado como retroativo
pelo ministro Luiz Fux. Assim, promotores e procuradores tiveram direito a
receber os “atrasados” dos cinco anos anteriores à liminar, ou seja, desde
2009. Para a maioria da classe, isso significou uma bolada de mais de R$ 262
mil que vem sendo paga em parcelas regulares desde então.
Outro auxílio que ajuda a compor o orçamento anual dos promotores é o
auxílio-livro. Uma ajuda extra de até R$ 1.700 por ano, criada em 2010 com o
objetivo de garantir a atualização técnica dos promotores e procuradores.
Entre 2010 e 2013, o advogado Rodrigo Xande Nunes trabalhou como oficial
de Promotoria dentro do MP, cuja tarefa era solicitar verbas indenizatórias
para os promotores e procuradores que assessora. “Bastava o promotor apresentar
uma nota fiscal de qualquer livraria com a descrição ‘livro’ para assegurar o
reembolso. Vi livros de doutrina jurídica que iam parar nas mãos de sobrinhos
do promotor que estavam cursando faculdade de direito, ou romances virarem
presentes de aniversário”, lembra.
Depois de ter deixado o cargo de oficial de Promotoria, Rodrigo Xande
seguiu carreira como advogado. É justamente por estar do lado de fora que ele
se dispõe a falar o que pensa sobre os benefícios, que acredita afastarem a
categoria da realidade dos brasileiros: “É impossível garantir direitos para
quem vive cercado de tantos privilégios”, argumenta.
Uma das instituições mais aguerridas na defesa de benefícios é a
Associação Paulista do Ministério Público (APMP). O escritório da associação
ocupa o 11º andar da sede do MPSP e é presidida pelo ex-candidato a
procurador-geral Felipe Locke. Procurado pela Pública, ele não concedeu entrevista para a reportagem.
O presidente da APMP tem, no entanto, se posicionado publicamente sobre
o tema. Segundo texto publicado na página da associação em outubro, sobre a
Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 62 que derruba a vinculação automática
dos salários de agentes públicos à remuneração dos ministros do Supremo, ele
escreveu: “Sem recursos nossas instituições não funcionam e sem Ministério
Público e a Magistratura, corrupto não vai para a cadeia. Esses projetos têm o
mesmo objetivo da PEC 37 [proposta derrubada pelo Congresso que propunha
limites ao poder de investigação de promotores e procuradores], acabar com o
poder de investigação, deixando os corruptos à solta”.
Ao mesmo tempo em que a APMP faz campanha contra a PEC 62, também exerce
pressão pela aprovação do Projeto de Lei Complementar (PLC) 27, que eleva os
salários dos ministros do Supremo para R$ 39,2 mil em janeiro de 2017. Mas
nestes tempos em que o governo federal fala em limitar gastos públicos, a luta
corporativa da APMP ficou mais difícil.
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