quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Previdência: eis as alternativas ao desmonte.

Denise Gentil, entrevistada por Glauco Faria

A economista que desmontou o mito do “déficit” previdenciário passa à ofensiva. Denise Gentil calcula: é possível manter e ampliar benefícios com mudanças tributárias, revisão das isenções e cobrança da dívida bilionária dos sonegadores.

Em tempos de “reforma” da Previdência, uma das vozes mais ativas contra o desmonte que o governo tenta promover é da professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro Denise Gentil. Em sua tese de doutorado, intitulada “A falsa crise da Seguridade Social no Brasil: uma análise financeira do período 1990 – 2005”, ela já desconstruía um dos alicerces da defesa da necessidade de se alterar a Previdência Social: o mito do déficit.
“É uma estratégia de ataque amplamente difundida pela mídia, que tem um grande interesse em divulgar que há déficit na Previdência. E por que? Porque os principais patrocinadores da grande mídia no Brasil são os bancos, que têm um grande interesse em desmontar a previdência pública não só para ampliar o espaço de suas carteiras de previdência privada, mas para ter o total controle sobre o orçamento público”, explica, observando o papel que os veículos da mídia tradicional tem na disseminação da ideia do déficit (veja aqui como esse conceito foi construído).

Para garantir o direito de acesso dos trabalhadores a um sistema previdenciário público, a professora sugere um “ajuste fiscal pelo lado das receitas”. Ou seja, formas de garantir o ingresso de recursos para o regime da Previdência Social. São medidas como a revisão de desonerações tributárias, a cobrança dos devedores e  sonegadores e iniciativas para aquecer a economia, de forma a aumentar a formalização e a arrecadação tributária como, por exemplo, uma queda mais acentuada da taxa de juros.
A entrevista que você confere a seguir foi dividida em duas partes.
Que tipo de outras alternativas teríamos para garantir um aumento de fluxo tanto para o sistema previdenciário quanto para a Seguridade Social?
Um ajuste fiscal pelo lado das receitas. Em primeiro lugar, seria necessário rever desonerações tributárias, concedidas inclusive com receitas previdenciárias. Em segundo, adotar uma maior eficiência na cobrança dos devedores, os sonegadores da Previdência. Nós temos hoje uma dívida do setor privado com a Previdência Social de 351 bilhões de reais e no ano passado apenas 0,3% dessa dívida foi recuperada pelo governo federal.
Em terceiro, o governo, em vez de aumentar o percentual da DRU, poderia reduzi-la para 5% ou até extingui-la, enquanto esse momento de depressão econômica estivesse presente. E em quarto lugar o governo poderia baixar a taxa de juros imediatamente, de forma mais profunda do que vem fazendo, já que ela inibe o crescimento econômico e, portanto, inibe a arrecadação tributária. A queda ia permitir uma economia nos gastos financeiros e ao mesmo tempo um maior fôlego para as empresas privadas que têm hoje um custo financeiro muito elevado. Em um momento de inflação em queda, a redução das taxas de juros é mais do que recomendado.
E por que a taxa de recuperação do dinheiro devido tão baixa?
Porque o governo não tem interesse em incomodar sonegadores. Pratica uma renúncia de receita para aumentar a margem de lucro das empresas, não cobra suas dívidas, e pratica as taxas de juros mais elevadas do mundo. São três exemplos de como o governo favorece o setor privado e ataca as classes populares, pedindo que elas aceitem o corte da sua renda.
Uma proposta de reforma trabalhista, aliada ao projeto de terceirização, também vai impactar negativamente a arrecadação da Previdência.
Sim, essas duas medidas provocariam uma ampla queda da arrecadação previdenciária. O governo provoca o déficit que ele alega haver com uma política fiscal contraditória. Não são os custos com aposentadorias e pensões, são as medidas que o governo toma que têm como consequência a queda de receita. A solução teria que ser políticas que aumentassem a receita, e não o contrário. O contrário significa uma ampla privatização da economia brasileira, desmontando o setor público para privilegiar o setor privado.
A senhora tem sido uma das críticas mais recorrentes da ideia do déficit, algo que perpassa sucessivos governos. Como essa ideia se consolidou de forma tão forte em parte do imaginário? É uma estratégia de ataque à Previdência Social?
É uma estratégia de ataque amplamente difundida pela mídia, que tem um grande interesse em divulgar que há déficit na Previdência. E por que? Porque os principais patrocinadores da grande mídia no Brasil são os bancos, que têm um grande interesse em desmontar a previdência pública não só para ampliar o espaço de suas carteiras de previdência privada, mas para ter o total controle sobre o orçamento público. Quanto mais se comprimem gastos sociais, mais há recursos para remunerar seus ativos financeiros.
O discurso de quebra da Previdência é muito apropriado para os interesses da elite financeira que patrocina a mídia brasileira. Essa ideia se transfere para a população de forma tão difundida que passa a ser tomada como verdade para o cidadão comum, para os burocratas do governo, para os homens de negócio. É um discurso muito fácil de ser aprendido. Parece muito coerente, embora não seja verdadeiro. Nem tudo que é coerente é verdadeiro.
Tem essa analogia que se costuma fazer com o orçamento doméstico de uma família, sempre feito de forma simplista para fixar essa imagem.
Exatamente, e o que a mídia não diz? Não diz que temos um Estado extremamente poderoso que tem mais de 370 bilhões de dólares em reservas internacionais, e quase 1 trilhão de reais na conta única do governo. Um Estado que tem essa quantidade de recursos empoçada no Banco Central não pode afirmar que tem crise fiscal. Um Estado que pratica uma renúncia de receita tributária no patamar anual de 283 bilhões de reais não pode dizer que tem uma crise fiscal.
E quem não tem empenho e nenhuma aptidão para cobrar devedores não pode se queixar de não ter dinheiro suficiente para atender às necessidades da população. Isso é muito importante. É preciso dizer o quanto de dinheiro que está empoçado no Banco Central.
E esses recursos empoçados servem a que tipo de finalidade?
Para poder colocar em prática uma política monetária altamente recessiva, de juros altos, e para controlar a taxa de câmbio. O governo pratica uma política monetária e cambial liberal-conservadora que oprime sua população, negando a ela condições dignas de vida.
A senhora mencionou um dado em uma palestra que é a questão dos swaps cambiais…
No ano passado, o governo doou 89 bilhões de reais em operações de swap cambial. São operações que preservam do risco os investidores que têm passivo em dólar. Ele doou para dar segurança a todos os agentes financeiros que desejam especular com o dólar, ou que tenham dívidas na moeda americana. Enquanto o governo diz que em 2015 existiu um déficit na Previdência de 85 bilhões de reais, faz operações de swap cambial onde perde 89 bilhões. O governo não para de gerar contradições, é uma coisa que não tem fim.
A conta é cobrada da população, e é a sobrevivência das pessoas que está sendo ameaçada. Não é que o governo esteja apenas cortando a renda, ele está atirando as pessoas à pobreza. Isso é muito mais profundo.
Outro ponto bastante batido pela mídia tradicional é a questão da previdência privada, como se fosse uma opção melhor do que a Previdência Social. A senhora pode explicar porque estamos falando de coisas absolutamente diferentes?
Não é a mesma coisa, a começar pelo risco. Uma previdência pública tem risco zero porque, por trás dela, existe um governo com enorme capacidade de arrecadação, com o Banco Central à sua disposição. O risco de alguém não receber a sua aposentadoria em uma previdência pública é zero. Mas o risco de alguém que investe em um fundo de previdência complementar privado não receber, quando se aposentar, o que planejava receber, é muito alto. Qual o tamanho desse risco? É o risco do tamanho das crises do mundo capitalista, que estão cada vez mais aparecendo em intervalos curtos de tempo e durando períodos cada vez mais longos.
A crise financeira que se iniciou nos Estados Unidos em 2007 e se espalhou pelo mundo não acabou até hoje. E quebrou vários fundos de previdência nos EUA e na Europa. O risco de vir outra crise depois dessa, com uma consequente crise bancária, é muito grande. As pessoas não têm noção do quanto significa colocar o seu dinheiro em um banco privado para ele administrar. Porque a taxa de capitalização desses fundos vai depender de muitas variáveis como, por exemplo, o patamar da taxa de juros, da taxa de câmbio, o índice de inflação, ou mesmo o que acontece na economia mundial e tem enorme reflexo na economia brasileira, provocando ataques especulativos.
Há muitas variáveis que não estão sob controle desses fundos de previdência e, por mais que falemos delas, não estamos levando em consideração a questão mais relevante, que é a gestão desses planos. Sabemos hoje, por exemplo, que alguns planos importantes na economia brasileira como Portalis, Petros, Funcef e Previ apresentam um rombo que, segundo dados, fechou em 2015 em 46 bilhões de reais. Só nesses quatro fundos. Há uma má gestão, investimentos arriscados, aparelhamento das instituições e há crise da economia, que faz com que a dificuldade de gestões desses fundos seja crescente. As pessoas não têm noção do risco que passam.
E outra coisa: é muito caro obter uma renda semelhante à que se obtém com o governo com uma contribuição muito menor. Aliás, isso não é amplamente divulgado, mas mesmo a imprensa já mostrou que, para conseguir uma renda de 5 mil reais por mês com um plano privado, o patamar de contribuição é muito mais elevado no setor privado do que seria no setor público. A contribuição é maior e o risco é maior. Aconselho as pessoas a nunca deixarem de ter uma previdência no INSS.
Existe um aspecto abordado em entrevista do secretário de Previdência do Ministério da Fazenda, Marcelo Caetanorelacionado à mulher, na qual ele atribui a ela um custo maior para a Previdência pelo fato de viver mais. Pode-se dizer que a mulher, nesse contexto já mencionado pela senhora de empobrecimento causado pelas medidas propostas na PEC 287, uma das principais vítimas dessa reforma?
Tem três grandes vítimas dessa reforma: a mulher, o trabalhador rural e os professores de ensino básico e médio. O governo deseja tratar a todos como se fossem iguais, estabelecendo uma idade única, mas isso é uma falácia, já que as pessoas não têm as mesmas condições de vida e ele vai punir os grupos sociais menos favorecidos. Nesse contexto, as mulheres são muito punidas porque têm uma condição no mercado de trabalho muito desigual em relação aos homens, com uma jornada de trabalho muito maior – a semanal chega a ser 15 horas superior –, e recebem um salário 24% menor. São extremamente sacrificadas por terem que cuidar das crianças, dos idosos e dos enfermos das famílias.
Além disso, embora estejam se escolarizando cada vez mais, essa escolarização acontece muito entre as mulheres de classe média e alta. Entre as de classes mais baixas, essa escolarização é muito prejudicada em função da necessidade que têm de cuidar dos filhos. Por conta disso, costumam trabalhar em atividades de meio expediente, com alta rotatividade, baixa remuneração e péssimas condições de trabalho. Essas mulheres não têm como progredir nessas profissões e acabam condenadas à pobreza.
O governo quer tratar homens e mulheres da mesma forma na aposentadoria somente para cortar gastos, se não há nenhuma igualdade no mercado de trabalho, por que haveria na hora de se aposentar? Só quer se igualar as pessoas na hora de se aposentar, não se trata das relações sociais de produção, tão assimétricas entre esses grupos, como é o caso do trabalhador rural, que tem uma expectativa de vida muito menor que a dos trabalhadores urbanos, mas o governo quer determinar a mesma idade. É uma irracionalidade, uma violência social muito grande.
Um trabalhador do campo no Nordeste vive até os 66 anos de idade. Se o governo conseguir aprovar uma idade única de 65 anos, muitos desses trabalhadores não vão nem alcançar a aposentadoria e os que alcançarem não vão desfrutar nem por um ano. Isso nas condições de hoje, antes da depressão. Depois, com as mudanças nas regras previdenciárias, o nível de empobrecimento vai ser maior, e a expectativa de vida desses grupos vai se reduzir mais ainda.

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