Previdência: eis as alternativas ao desmonte.
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Denise Gentil, entrevistada por Glauco Faria |
A
economista que desmontou o mito do “déficit” previdenciário passa à
ofensiva. Denise Gentil calcula: é possível manter e ampliar
benefícios com mudanças tributárias, revisão das isenções e cobrança da
dívida bilionária dos sonegadores.
“É uma estratégia
de ataque amplamente difundida pela mídia, que tem um grande interesse em
divulgar que há déficit na Previdência. E por que? Porque os principais
patrocinadores da grande mídia no Brasil são os bancos, que têm um grande
interesse em desmontar a previdência pública não só para ampliar o espaço de
suas carteiras de previdência privada, mas para ter o total controle sobre o
orçamento público”, explica, observando o papel que os veículos da mídia
tradicional tem na disseminação da ideia do déficit (veja aqui como
esse conceito foi construído).
Para garantir o
direito de acesso dos trabalhadores a um sistema previdenciário público, a
professora sugere um “ajuste fiscal pelo lado das receitas”. Ou seja, formas de
garantir o ingresso de recursos para o regime da Previdência Social. São
medidas como a revisão de desonerações tributárias, a cobrança dos devedores
e sonegadores e iniciativas para aquecer a
economia, de forma a aumentar a formalização e
a arrecadação tributária como, por exemplo, uma queda mais acentuada da
taxa de juros.
A entrevista que
você confere a seguir foi dividida em duas partes.
Que tipo de outras alternativas teríamos para garantir um aumento de
fluxo tanto para o sistema previdenciário quanto para a Seguridade Social?
Um ajuste fiscal
pelo lado das receitas. Em primeiro lugar, seria necessário rever desonerações
tributárias, concedidas inclusive com receitas previdenciárias. Em segundo,
adotar uma maior eficiência na cobrança dos devedores, os sonegadores da
Previdência. Nós temos hoje uma dívida do setor privado com a Previdência
Social de 351 bilhões de reais e no ano passado apenas 0,3% dessa dívida foi
recuperada pelo governo federal.
Em terceiro, o
governo, em vez de aumentar o percentual da DRU, poderia reduzi-la para 5% ou
até extingui-la, enquanto esse momento de depressão econômica estivesse
presente. E em quarto lugar o governo poderia baixar a taxa de juros
imediatamente, de forma mais profunda do que vem fazendo, já que ela inibe o
crescimento econômico e, portanto, inibe a arrecadação tributária. A queda ia
permitir uma economia nos gastos financeiros e ao mesmo tempo um maior fôlego
para as empresas privadas que têm hoje um custo financeiro muito elevado. Em um
momento de inflação em queda, a redução das taxas de juros é mais do que
recomendado.
E por que a taxa de recuperação do
dinheiro devido tão baixa?
Porque o governo
não tem interesse em incomodar sonegadores. Pratica uma renúncia de receita
para aumentar a margem de lucro das empresas, não cobra suas dívidas, e pratica
as taxas de juros mais elevadas do mundo. São três exemplos de como o governo
favorece o setor privado e ataca as classes populares, pedindo que elas aceitem
o corte da sua renda.
Uma proposta de reforma trabalhista,
aliada ao projeto de terceirização, também vai impactar negativamente a
arrecadação da Previdência.
Sim, essas duas
medidas provocariam uma ampla queda da arrecadação previdenciária. O governo
provoca o déficit que ele alega haver com uma política fiscal contraditória.
Não são os custos com aposentadorias e pensões, são as medidas que o governo
toma que têm como consequência a queda de receita. A solução teria que ser
políticas que aumentassem a receita, e não o contrário. O contrário significa
uma ampla privatização da economia brasileira, desmontando o setor público para
privilegiar o setor privado.
A senhora tem sido uma das críticas
mais recorrentes da ideia do déficit, algo que perpassa sucessivos governos.
Como essa ideia se consolidou de forma tão forte em parte do imaginário? É uma
estratégia de ataque à Previdência Social?
É uma estratégia de
ataque amplamente difundida pela mídia, que tem um grande interesse em divulgar
que há déficit na Previdência. E por que? Porque os principais patrocinadores
da grande mídia no Brasil são os bancos, que têm um grande interesse em
desmontar a previdência pública não só para ampliar o espaço de suas carteiras
de previdência privada, mas para ter o total controle sobre o orçamento
público. Quanto mais se comprimem gastos sociais, mais há recursos para
remunerar seus ativos financeiros.
O discurso de quebra da Previdência é muito
apropriado para os interesses da elite financeira que patrocina a mídia
brasileira. Essa ideia se transfere para a
população de forma tão difundida que passa a ser tomada como verdade para o
cidadão comum, para os burocratas do governo, para os homens de negócio. É um
discurso muito fácil de ser aprendido. Parece muito coerente, embora não seja
verdadeiro. Nem tudo que é coerente é verdadeiro.
Tem essa analogia que se costuma
fazer com o orçamento doméstico de uma família, sempre feito de forma simplista
para fixar essa imagem.
Exatamente, e o que a mídia não diz? Não diz que
temos um Estado extremamente poderoso que tem mais de 370 bilhões de dólares em
reservas internacionais, e quase 1 trilhão de reais na conta única do governo.
Um Estado que tem essa quantidade de recursos empoçada no Banco Central não
pode afirmar que tem crise fiscal. Um Estado que pratica uma renúncia de
receita tributária no patamar anual de 283 bilhões de reais não
pode dizer que tem uma crise fiscal.
E quem não tem
empenho e nenhuma aptidão para cobrar devedores não pode se queixar de não ter
dinheiro suficiente para atender às necessidades da população. Isso é muito
importante. É preciso dizer o quanto de dinheiro que está empoçado no Banco
Central.
E esses recursos empoçados servem a
que tipo de finalidade?
Para poder colocar
em prática uma política monetária altamente recessiva, de juros altos, e para
controlar a taxa de câmbio. O governo pratica uma política monetária e cambial
liberal-conservadora que oprime sua população, negando a ela condições dignas
de vida.
A senhora mencionou um dado em uma
palestra que é a questão dos swaps cambiais…
No ano passado, o
governo doou 89 bilhões de reais em operações de swap cambial. São operações
que preservam do risco os investidores que têm passivo em dólar. Ele doou para
dar segurança a todos os agentes financeiros que desejam especular com o dólar,
ou que tenham dívidas na moeda americana. Enquanto o governo diz que em 2015
existiu um déficit na Previdência de 85 bilhões de reais, faz operações de swap
cambial onde perde 89 bilhões. O governo não para de gerar contradições, é uma
coisa que não tem fim.
A conta é cobrada da população, e é a sobrevivência
das pessoas que está sendo ameaçada. Não é que o governo esteja apenas cortando
a renda, ele está atirando as pessoas à pobreza. Isso é muito mais profundo.
Outro ponto bastante batido pela
mídia tradicional é a questão da previdência privada, como se fosse uma opção
melhor do que a Previdência Social. A senhora pode explicar porque estamos
falando de coisas absolutamente diferentes?
Não é a mesma
coisa, a começar pelo risco. Uma previdência pública tem risco zero porque, por
trás dela, existe um governo com enorme capacidade de arrecadação, com o Banco
Central à sua disposição. O risco de alguém não receber a sua aposentadoria em
uma previdência pública é zero. Mas o risco de alguém que investe em um fundo
de previdência complementar privado não receber, quando se aposentar, o que
planejava receber, é muito alto. Qual o tamanho desse risco? É o risco do
tamanho das crises do mundo capitalista, que estão cada vez mais aparecendo em
intervalos curtos de tempo e durando períodos cada vez mais longos.
A crise financeira
que se iniciou nos Estados Unidos em 2007 e se espalhou pelo mundo não acabou
até hoje. E quebrou vários fundos de previdência nos EUA e na Europa. O risco
de vir outra crise depois dessa, com uma consequente crise bancária, é muito
grande. As pessoas não têm noção do quanto significa colocar o seu dinheiro em
um banco privado para ele administrar. Porque a taxa de capitalização desses
fundos vai depender de muitas variáveis como, por exemplo, o patamar da taxa de
juros, da taxa de câmbio, o índice de inflação, ou mesmo o que acontece na
economia mundial e tem enorme reflexo na economia brasileira, provocando
ataques especulativos.
Há muitas variáveis
que não estão sob controle desses fundos de previdência e, por mais que falemos
delas, não estamos levando em consideração a questão mais relevante, que é a
gestão desses planos. Sabemos hoje, por exemplo, que alguns planos importantes
na economia brasileira como Portalis, Petros, Funcef e Previ apresentam um
rombo que, segundo dados, fechou em 2015 em 46 bilhões de reais. Só nesses
quatro fundos. Há uma má gestão, investimentos arriscados, aparelhamento das
instituições e há crise da economia, que faz com que a dificuldade de gestões
desses fundos seja crescente. As pessoas não têm noção do risco que passam.
E outra coisa: é
muito caro obter uma renda semelhante à que se obtém com o governo com uma
contribuição muito menor. Aliás, isso não é amplamente divulgado, mas mesmo a
imprensa já mostrou que, para conseguir uma renda de 5 mil reais por mês com um
plano privado, o patamar de contribuição é muito mais elevado no setor privado
do que seria no setor público. A contribuição é maior e o risco é maior.
Aconselho as pessoas a nunca deixarem de ter uma previdência no INSS.
Tem três grandes vítimas dessa reforma: a mulher, o
trabalhador rural e os professores de ensino básico e médio. O governo deseja tratar a todos como se fossem iguais, estabelecendo
uma idade única, mas isso é uma falácia, já que as pessoas não têm as mesmas
condições de vida e ele vai punir os grupos sociais menos favorecidos. Nesse
contexto, as mulheres são muito punidas porque têm uma condição no mercado de
trabalho muito desigual em relação aos homens, com uma jornada de trabalho
muito maior – a semanal chega a ser 15 horas superior –, e recebem um salário
24% menor. São extremamente sacrificadas por terem que cuidar das crianças, dos
idosos e dos enfermos das famílias.
Além disso, embora
estejam se escolarizando cada vez mais, essa escolarização acontece muito entre
as mulheres de classe média e alta. Entre as de classes mais baixas, essa
escolarização é muito prejudicada em função da necessidade que têm de cuidar
dos filhos. Por conta disso, costumam trabalhar em atividades de meio
expediente, com alta rotatividade, baixa remuneração e péssimas condições de
trabalho. Essas mulheres não têm como progredir nessas profissões e acabam
condenadas à pobreza.
O governo quer tratar homens e mulheres da mesma
forma na aposentadoria somente para cortar gastos, se não há nenhuma igualdade
no mercado de trabalho, por que haveria na hora de se aposentar? Só quer se igualar as pessoas na hora de se aposentar, não se trata das
relações sociais de produção, tão assimétricas entre esses grupos, como é o
caso do trabalhador rural, que tem uma expectativa de vida muito menor que a
dos trabalhadores urbanos, mas o governo quer determinar a mesma idade. É uma
irracionalidade, uma violência social muito grande.
Um trabalhador do
campo no Nordeste vive até os 66 anos de idade. Se o governo conseguir aprovar
uma idade única de 65 anos, muitos desses trabalhadores não vão nem alcançar a
aposentadoria e os que alcançarem não vão desfrutar nem por um ano. Isso nas
condições de hoje, antes da depressão. Depois, com as mudanças nas regras
previdenciárias, o nível de empobrecimento vai ser maior, e a expectativa de
vida desses grupos vai se reduzir mais ainda.