Como Giorgio Agamben e Walter Benjamin releram as
observações cristãs sobre o dinheiro. Por que a psicanálise o associa à merda,
à “insuficiência de mim” e à guerra de todos contra todos. Por Mauro Lopes (Outras
Palavras)
Por Mauro Lopes, editor do blog Caminho pra Casa | Imagem: Mark Wagner
Por Mauro Lopes, editor do blog Caminho pra Casa | Imagem: Mark Wagner
O filósofo italiano Giorgio Agamben, um dos
relevantes protagonistas do pensamento crítico na virada do século XX para o
XXI inspirou-se em outro filósofo, este um protagonista da primeira metade do
século XX, um pensador fora da curva, Walter Benjamin. Em seu curto e denso “O
Capitalismo como Religião”, de 1921 (aqui), Benjamin escreveu
que o capitalismo é em si mesmo a religião mais implacável que já existiu, e
promove um culto ininterrupto ao Dinheiro, “sem trégua nem piedade”, uma
religião que não visa a reforma da pessoa, “mas seu o seu esfacelamento”.[1]
O filósofo alemão sugeriu uma comparação entre as imagens dos santos das
religiões e as cédulas de dinheiro de diversos países –ele não imaginava, à
época, que este Deus-dinheiro estaria diretamente louvado nas cédulas nos EUA (In God we Trust, em Deus Confiamos) e, desde 1980, no Brasil, onde
lê-se em todas as notas a frase de adoração à moeda corrente: Deus seja louvado.
Ambos foram influenciados por um dito de Jesus, que está no centro da
liturgia católica do 8º Domingo do Tempo Comum (26), às portas do período
quaresmal que antecede a Semana Santa e a Páscoa: “Vós não podeis servir a Deus
e ao dinheiro.” O texto proclamado é do Evangelho de Mateus (Mt 6,24-34). A oposição
entre Deus e o dinheiro é um tema central ao longo da história e, para Jesus, a
relação de cada qual com o dinheiro é definidora de sua relação com as outras
pessoas e a vida.
Como essa questão aparece na vida das pessoas? A psicanálise procurou
investigar a relação entre o ser humano e o dinheiro e chegou a conclusões que
podem soar surpreendentes e inacreditáveis num primeiro momento. Como apontou o
sacerdote jesuíta e teólogo espanhol Carlos Domingues Morano, dinheiro é um
assunto crucial, apesar de muitas vezes escamoteado -como o sexo. Na verdade, o
tema nunca é “só dinheiro”. As relações entre os homens/mulheres com o dinheiro
comportam dimensões nem sempre lógicas, que extrapolam o discurso racional mais
ou menos organizado –é sempre “algo mais” que dinheiro.[2] Na relação das pessoas com o dinheiro, revelou-nos a psicanálise, “está
também implicada uma ‘questão de amor’; dito em termos mais freudianos, uma
questão de ordem libidinal, inconsciente e com raízes na infância. Isso nos
permite compreender, entre outras coisas, porque, assim como ocorre com a
sexualidade, o dinheiro provoca tantas reações de dissimulação, falso pudor e
hipocrisia.”[3]
Há uma questão oculta que Freud trouxe à tona –e causou enorme
mal-estar: a intimidade entre nossa relação o dinheiro e a fase da libido anal,
relacionando-o com os excrementos.
O valor nodal do dinheiro para os adultos é, descobriu Freud, análogo ao
altíssimo valor que os excrementos possuem para as crianças. Outro psicanalista,
Sandor Ferenczi, do grupo de Freud, demonstrou o caminho passo a passo pelo
qual a criança efetua a sublimação do conteúdo anal até chegar, finalmente, à
transmutação simbólica em dinheiro. “A matéria fecal vai passando por uma série
de substituições, nas quais vai progressivamente distorcendo a primitiva
satisfação auto erótica relacionada com a defecação: o barro, a areia, a pedra,
o jogo com bolinhas de gude e botões todos objetos que proporcionam tanta
satisfação à criança que facilitam a substituição do fétido, duro, mole pelo
inodoro, seco duro.”[4] O
dinheiro ingressa nessa cadeia de sublimações por um caminho complexo até
desvincular-se de toda a aparência com sua “fonte original” e permitir o
surgimento da máxima de que o dinheiro não fede (pecunia non olet).
Foto dinheiro
A relação entre as fezes e o dinheiro pode parecer um absurdo num
primeiro momento. Mas, se observamos com mente aberta, veremos que são
abundantes e recorrentes as imagens e símbolos que desnudaram ao longo da
história relação que os homens estabelecem entre as fezes e o ouro ou o
dinheiro. Uma delas é a figura do “cagador de ducados” que está representada
nos portais de bancos alemães. São inúmeras as expressões populares que
consagram esta associação sem que nos demos conta disso. Quando uma
pessoa tem muito dinheiro dizemos que está “podre de rica”; se o dinheiro tem
origem suspeita, falamos em “dinheiro sujo” e, ao contrário, se a pessoa está
sem dinheiro, dizemos que está “limpa”; ou que está “apertada”.
foto 02
Esta relação foi capturada mais de mil anos antes de Freud numa intuição
genial do bispo Basílio de Cesareia, em meados do século IV. São Basílio
decretou: o dinheiro é o cocô do diabo. A expressão foi deixada de lado pelos
cristãos séculos a fio até que São Francisco, no século XII, mencionou Basílio;
agora, ela foi novamente posta á luz pelo Papa Francisco em fevereiro de 2015,
apesar de ele preferir a palavra “esterco”, talvez menos crua. Clique e veja o vídeo em que o Papa menciona a expressão de
Basílio (Francisco trata do assunto entre 1min50 e 2min30).
Como se dá esta articulação dinheiro-fezes? A psicanálise explorou as
relações entre as dinâmicas de possessão, características
da fase anal, e de propriedade, fundante da
civilização ocidental e especialmente do capitalismo.
Quando uma criança perde suas fezes sente a dor de ter deixado escapar
algo que lhe era tão essencial que estava dentro de si, era parte de seu
corpo, mas que não mais consegue por de volta; isto é a possessão. A propriedade refere-se a objetos
externos, mas que deveriam me pertencer, “coisas que de fato estão fora, mas
simbolicamente estão dentro”. São objetos revestidos de “qualidade do eu”. Para
muitas pessoas, talvez a imensa maioria no capitalismo, o dinheiro reveste-se
desta qualidade do eu. Isso origina
processos intensos de defesa e projeção. Perder dinheiro para essas
pessoas é muito mais que perda de algo externo, exterior, “mas sim de algo que
foi previamente in-corporado”, ou seja, algo que se tornou parte de mim. A
posse e controle do dinheiro têm o mesmo papel que o controle da atividade
defecatória para a criança diante do mundo exterior. Uma “relação
regressiva com o dinheiro ou com a propriedade de objetos” fica impregnada pela
dimensão possessiva (retentiva) da fase anal.[5]
O resultado é avassalador: o amor ao dinheiro, quando extravasa suas
funções de adaptação à realidade, acaba expressando uma dimensão infantil da
afetividade, o que implica uma dominância do narcisismo, um desenvolvimento
truncado da afetividade (da relação com o outro, da capacidade de amar e/ou
odiar) e do autorrespeito e respeito pelo outro.[6] Esta
infantilização narcísica dos ricos ou, dos “novos ricos”, numa expressão
recorrentes de Basílio, é facilmente verificável na convivência com eles e
espalha-se em ondas pela indústria do entretenimento, especialmente o cinema
feito para o grande público.
Ter e reter dinheiro são tentativas continuadas de encobrir as carências
internas e conquistar segurança. Lembro-me de uma conversa com um consultor
de investimentos sobre um casal, cliente do banco em que ele trabalhava.
Eles haviam feito uma série de contas em planilhas (como se a vida pudesse ser
contida em planilhas Excel) e concluído que quando tivessem R$ 20 milhões em
aplicações financeiras (excluídos bens como casa e carros) poderiam finalmente
“desestressar” e olhar com tranquilidade para a vida. Esta posição remetia-os a
frequentes crises de insegurança e angústia extrema, pois como escreveu Erich
Fromm, “se sou o que tenho e o que tenho se perde, então quem sou?”[7]
Ou, expressando Fromm de maneira complementar: se sou o que tenho e
nunca tenho o que considero suficiente, sempre haverá uma “insuficiência de
mim” que precisa ser coberta e recoberta com necessidade de acúmulo cada vez
maior enquanto o fosso da insegurança aprofunda-se, na medida em que a
possibilidade apavorante da perda de dinheiro para outro é um fantasma
permanente. É uma vida em estado de guerra permanente para defender o que é
“meu” contra aquele que deseja apropriar-se, podendo ser desde um competidor,
políticas públicas de um governo que deixam de favorecer o crescimento de minha
fortuna, os pobres que se mobilizam para tomar dinheiro do governo que a mim
pertence “de direito”. Pois o capitalismo garante: tenho direito a possuir tudo
e tudo reter para mim, sem limites.
Sim, o capitalismo é, numa linguagem popular, o encontro da fome com a vontade de comer. Nele, esta
condição pulsional presente na vida de cada ser humano é organizada como um sistema social que alcançou, na expressão de
Benjamin, a dimensão suprema de um culto organizado e sistemático. O psicanalista austríaco Otto
Fenichel demonstrou como, antes de tudo, a função real do dinheiro numa
sociedade determina o alcance e a intensidade das tendências pulsionais de
retenção. Tais processos acontecem em sociedades determinadas com
estruturas econômicas, sociais e culturais determinadas, com uma Igreja
determinada e, portanto, alcançam dimensões que, levando em conta as escolhas e
histórias individuais, situam-nas num contexto geográfico-temporal preciso.
Portanto, a “mobilização para a guerra” que garanta a cada indivíduo o
seu “direito supremo à retenção” é o mantra do capitalismo e “mobiliza a
hostilidade como tendência a despojar o outro, de modo a fazer com que o desejo
de fraudar, explorar e frustrar os outros acabe se convertendo numa autêntica
norma cultural.”[8] Essa
hostilidade torna-se a base relacional que se reproduz em todas as relações,
mesmo as mais íntimas: assim, por exemplo, o encontro com o outro ou a outra
para a vida amorosa e o casamento converte-se numa série de cálculos e
contratos e precauções para a possibilidade futura de separação e rompimento.
A dissonância absoluta entre o amor pelo dinheiro e o amor a Deus
proclamada por Jesus e como ela atinge dimensões dramáticas no interior de um
sistema que no qual o dinheiro ocupa o lugar de Deus. Trata-se de uma
incompatibilidade radical, apesar de todos os esforços dos rigoristas e
integristas católicos, dos neopentecostais e outros cristãos para amenizar as
palavras de Jesus e relativizá-las: “Não é possível amar a Deus, isto é, amar a
generosidade, a entrega, a solidariedade, a compaixão e a misericórdia e ao
mesmo tempo amar o dinheiro, isto é, amar o tomar tudo para si, a acumulação
que é a base de toda a injustiça e de todo o desamor: fome, guerra, exploração,
morte etc.”[9]
É o que tem feito seguidamente o Papa Francisco. Uma das marcas de seu
pontificado é a denúncia da submissão ao Deus-dinheiro. A primeira vez em
que explicitou sua postura foi dois meses depois de sua posse. Em maio de 2013,
ele afirmou, num discurso que indicou a revolução nascente no Vaticano, que no capitalismo
“criamos novos ídolos; a adoração do antigo bezerro de ouro encontrou uma nova
e impiedosa imagem no fetichismo do dinheiro e na ditadura da economia sem
rosto nem propósito verdadeiramente humanos” e que a base deste culto ao
Deus-dinheiro está “na relação que temos com o dinheiro, em aceitar o seu
domínio sobre nós e sobre as nossas sociedades”. Três anos depois, numa entrevista, em agosto de
2016, o Papa acentuou: “No centro da economia mundial está o deus Dinheiro, e
não a pessoa, o homem e a mulher”. Na mensagem para a Quaresma de 2017, período que se abre com a Quarta-feira de
Cinzas Francisco foi taxativo: “A ganância do dinheiro é a raiz de todos os
males”.
Se para os cristãos, o amor não é apenas um preceito, mas é o conteúdo
sobre o qual o cristianismo está edificado, se é a “pedra angular”, o apego ao
dinheiro, fonte de desamor, não se restringe a um problema ético, mas é um
ataque direto à fé. A fidelidade a Deus fica interditada para aquele que não
realiza a escolha por Ele e, por caminhos explícitos ou cheios de sombras e
ilusões e autoengano, opta pela adoração à coisa: o dinheiro.
Por isso as religiões estão profundamente abaladas em seu fundamento na
contemporaneidade e, muitas delas, ou tendências poderosas em seu interior,
como no caso da Igreja Católica, realizam explicita ou implicitamente operações
de substituição de um culto pelo outro, colocando o dinheiro no lugar de Deus.
Tornam-se promotoras da tendência pulsional identificada por Jesus e estudada à
profundidade pela psicanálise e igrejas-sucursais da “religião oficial”: o
capitalismo.
__________________________
[1] Benjamin, Walter. O capitalismo como religião. São Paulo, Boitempo Editorial,
2013, p. 22
[2] Morano, Carlos Dominguez. Crer depois de Freud. 3ª edição, São Paulo,
[2] Morano, Carlos Dominguez. Crer depois de Freud. 3ª edição, São Paulo,
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