Quem ganha com o Déficit Fiscal?
Velha mídia
cala-se diante do pior rombo de todos os tempos nas contas públicas. Por que o
desastre ocorreu se estamos, supostamente, economizando e corrigindo os erros
do passado? Como os números ajudam a pensar novas políticas?
Por Antonio
Martins Gabriela Leite
Que
falta fazem o bom jornalismo e a boa política. Passou quase despercebido, ontem
o relatório em que Banco Central apontou um rombo fiscal inédito nas contas
públicas, em 2016. O resultado primário – que compara a arrecadação de impostos
com os gastos típicos de governo (sociais, infraestrutura, pagamento dos
servidores) foi um déficit recorde de 156 bilhões de reais, ou 2,47% do PIB.
Quando se incluem os juros pagos aos banqueiros e à aristocracia financeira, os
números saltam: 562 bilhões de reais, ou 8,93% do PIB. A deterioração rápida do
cenário é ainda mais impressionante. Ainda em 2014, último ano antes do início
do “ajuste fiscal”, o déficit primário era cinco vezes menor – apenas 0,56% do
PIB.
O que mais merece atenção, porém, é o que o
governo e a velha mídia mais tentam ocultar. A piora se deu exatamente no
período em que estaríamos, segundo a narrativa oficial, corrigindo os erros do
passado, fazendo os sacrifícios necessários para entrar nos trilhos novamente.
O que há de errado com esta narrativa? Por que quanto mais economizamos, mais
mergulhamos em déficit e dívida? Que interesses provocam o silêncio dos jornais
e das TVs? Mais importante: quais seriam as políticas alternativas?
O Brasil vive um período
de ataques aos direitos conquistados desde a Constituição de 88. A PEC 55
congelou o gastos sociais por vinte anos. A “reforma” da Previdência afetará,
se não for barrada a tempo, dezenas de milhões de pessoas. O presidente do Banco
Central, Ilan Goldfajn, disse ontem, numa reunião com banqueiros, que é só o
começo. Mas estas medidas não são, é claro, apresentadas de forma crua. Ninguém
diz: “vamos aproveitar que tomamos o poder para impor uma derrota histórica às
maiorias”. Tudo é revestido com um verniz supostamente técnico. A chave do
discurso é: “ou apertamos os cintos, ou o país vai quebrar”. O rombo das contas
públicas, em 2016, devasta esta narrativa. Por isso, é preciso examiná-lo,
interpretá-lo, torná-lo conhecido, debatê-lo. Vamos tratar aqui de três pontos
essenciais.
Primeiro: O déficit público primário multiplicou-se
por cinco, exatamente no período em que começaram os sacrifícios reparadores.
Por que? A resposta é: ao contrário do que argumentam os economistas e políticos
conservadores, as contas de um Estado não
são iguais às de uma família.
Seguem uma lógica totalmente distinta. Os números e gráficos a seguir – todos
oficiais, do ministério da Fazenda – permitem compreender.
Quando o Estado deixa de
gastar, a economia derrapa. Menos salas de aula, menos médicos nos postos de
saúde, menos obras – tudo isso equivale a mais demissões, mais gente
desempregada e sem poder de compra, menos dinheiro circulando na economia.
Se a economia para, a
arrecadação de impostos despenca. O corte de gastos retorna rapidamente, como
um tiro pela culatra. Confira no gráfico acima. Esta é a curva da arrecadação
de impostos federais. Repare duas mudanças bruscas. Primeiro, ela sobe
aceleradamente a partir de 2009, quando o governo Lula aumentou o
salário-minimo e o Bolsa Família e orientou os bancos públicos a oferecerem
crédito. O governo gasta mais, mas arrecada muito mais.
Veja agora o que
acontece a partir do “ajuste fiscal” iniciado no segundo mandato de Dilma. O
governo economiza tostões, mas deixa de arrecadar bilhões. Não se iluda com a
pequena melhora sugerida pelo final do gráfico. Ela se deve a um evento
extraordinário e sem repetição. No final do ano passado, milionários que
mantinham dinheiro ilegal em paraísos fiscais repatriaram parte destes valores,
usufruindo de vantagens oferecidas pelo governo
Os números do declínio estão detalhados neste outro documento
oficial do ministério da Fazenda. Em 2016, houve redução na arrecadação de
todos os tributos: – 6,89% no Cofins e PIS-Pasep; -0,97% no Imposto de Renda
das Pessoas Jurídicas; -3,5 % nas contribuições à Previdência; só cresceu a
receita extraordinária das repatriações, que não se repetirá nunca mais. Resumo da história: ao
contrário do que acontece com uma família, quando os Estados cortam gastos eles
frequentemente perdem
dinheiro, porque arrecadam
muito menos. Ou seja: quando alguém diz que é preciso gastar menos em Saúde, em
Educação ou em Previdência, para reequilibrar as contas públicas, desconfie: há
um interesse oculto por trás deste discurso
O interesse, você pode
enxergar aqui, neste outro aspecto dos gastos públicos que os jornais fazem
questão de sequer mencionar. São os juros pagos pelo Estado a quem tem dinheiro
sobrando para investir. O grosso do gasto beneficia os banqueiros e a
aristocracia financeira. Foram 407 bilhões de reais em 2016 – quatro vezes o
orçamento do maior ministério, o da Saúde. Agora, pense: se o objetivo do
governo fosse de fato sanear as contas públicas, por que não começar pelos
juros, a despesa mais devastadora e a que não tem nenhum efeito social? Outra
pergunta: por que a PEC 55, que congelou todos os gastos dos ministérios, por
vinte anos, deixou totalmente sem controle o pagamento de juros da dívida?
A terceira questão a
examinarmos, mesmo que brevemente, são as alternativas. Aqui, nos deparamos com
um impasse também político. Diante das dificuldades de 2014, o lulismo poderia
ter optado por uma saída oposta à que prevaleceu. Cumprir as promessas feitas
em campanha, o Coração
Valente. Em vez disso, Dilma
escolheu para ministro da Fazenda Joaquim Levy. Lula, comenta-se preferia um
opção semelhante – Luís Trabuco, o presidente do Bradesco.
Provavelmente, o lulismo
chegou a seu limite. Quanto mais o Estado investe em políticas públicas, em
direitos para todos, mais dilui os privilégios do dinheiro. Se houver escolas e
hospitais públicos de excelência, quem pagará pelo ensino privado ou por planos
de saúde? Os tolos?
Seja como for, os dados
nos ajudam a pensar e a imaginar futuros. Um Estado democrático, ligado às
demandas da população, pode e deve gastar muito mais. Pode pensar num plano
para urbanização das periferias, para multiplicação dos metrôs e trens urbanos,
para apoio a uma agricultura pós-agronegócio, para a transformação de nossa
matriz energética – em busca das fontes limpas e renováveis.
Perceber o fracasso das
políticas de corte de direitos é, nesse sentido, didático. Revela os interesses
que se escondem por trás dos que falam em sacrifício, E abre um horizonte
imenso à imaginação de outro Brasil possível.
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