Prisões
alternativas: eficientes e desconhecidas
ISSO EXISTE?
Em 50 presídios brasileiros, que a mídia ignora, detentos
cuidam das chaves. Não há armas nem carcereiros. Nunca houve rebeliões.
Recuperação chega a 95%
Imagine
uma cadeia sem armas, agentes de segurança, violência ou repressão. Um lugar
onde os presos, que não são chamados dessa forma,
cuidam das chaves. Imagine um prédio ensolarado, pintado de azul celeste, com
uma grande horta ao lado de fora e o vento, que traz consigo o cheiro do
alecrim. Imagine todas as pessoas juntas à mesa farta, com pratos, talheres,
dignidade. Esse lugar sem registro de rebeliões ou mortes, que mais parece música de John Lennon,
já existe no Brasil. São as Apacs (Associações de Proteção e Assistência ao
Condenado), ou, como seus criadores preferem ler, Amando ao Próximo Amarás a
Cristo.
As Apacs, administradas por associação
de voluntários, muitos deles cristãos, podem soar uma utopia no país que
iniciou o ano com matanças nos presídios do Norte e Nordeste,
mas são consideradas pela ONU (Organização das Nações Unidas) como o único
modelo prisional que deu certo no Brasil, o quarto país com maior população
carcerária do mundo. São 50 associações pelo país com resultados semelhantes:
custam R$ 800 por preso (contam com voluntários e funcionários), três vezes
menos que a média nacional de 2.400 reais, e o índice de recuperação é de 95%
contra 25% das cadeias padrões.
Quatro critérios selecionam os
prisioneiros. Eles precisam ser condenados, manifestar por escrito que aceitam
as normas apaquianas, terem família ou cometido o crime na comarca da
associação – para facilitar a assistência jurídica e o envolvimento familiar.
Além do critério de antiguidade. São priorizados condenados com penas mais
longas, indiferentemente do crime que cometeram, em unidades que também contrastam com o superlotado resto do sistema:
as Apacs têm em média 200 detentos. A única Apac que se diferencia é a de Santa
Luzia (MG). Localizada na região metropolitana de Belo Horizonte há uma
exigência a mais motivada pela longa fila de espera: um ano de bom
comportamento.
A primeira Apac foi criada há 45 anos em
São José dos Campos (SP), pelo advogado e jornalista Mario Otoboni e um grupo
de voluntários cristãos. Desde então, as unidades se espalharam por sete
Estados brasileiros. Em março, uma nova associação abre em Florianópolis, a
centésima do mundo, e sua idealizadora e futura presidente, Leila Pivatto, 67
anos, mostra seu entusiasmo: “Quando condenados, e vale lembrar que 40% dos 600
mil encarcerados no Brasil não são, os presos deveriam perder o direito de ir e
vir. Apenas. Mas eles perdem tudo. O contato com as famílias, os direitos à
saúde, educação, trabalho e assistência jurídica. Nós entendemos que para matar
o criminoso e salvar o homem é preciso cidadania”.
Leila é também voluntária há dez anos da
Pastoral Carcerária, um braço assistencial ligado à Igreja Católica, trabalha
12 horas por dia sem ganhar nenhum centavo. Ela e seus colegas pelo país não
são os únicos a apostar no modelo. A proposta ganhou a atenção da presidente do Supremo Tribunal
Federal, Cármen Lúcia: “As Apacs são a minha aposta. Elas têm dado
certo. Basta dizer que a reincidência é de 5%, enquanto nos presídios comuns é
de até 75%”, disse a ministra em entrevista ao Programa Roda Viva, da TV
Cultura, em outubro do ano passado.
Oposta às cadeias comuns no cerne,
talvez a diferença maior das Apacs seja sua concepção de defesa da justiça
restaurativa, não da punitiva. Elas não podem ser criadas pelos governos, só
pela organização e boa vontade da sociedade civil, esse é um dos principais
obstáculos para expansão do modelo em larga escala.
“Não há solução imediata para as
prisões. Todo processo será lento e exigirá consciência da população. Eu
acredito que as Apacs sozinhas não irão resolver. É preciso estimular o desencarceramento. Há
gente presa por bobagens. A minoria da massa prisional é perigosa, os outros
poderia cumprir penas alternativas. E, obviamente, é preciso gerar
oportunidade. Antes construirmos escolas do que prisões”, disse Leila.
No caso da unidade de Florianópolis
foram seis anos da primeira assembleia até a construção do prédio. O primeiro
passo foi a audiência pública na comarca, em seguida a criação jurídica, que
não visa nenhum lucro, e visitas à Apac de Itaúna, em Minas Gerais, que existe há 17 anos e é
celebrada pela sua excelência _lá fugas são raras: a última demorou dez anos
para acontecer.
A primeira Apac de Santa Catarina ficará
no Complexo da Agronômica, em Florianópolis, onde cinco unidades já detêm quase
1,6 mil pessoas. A Apac será a sexta. A única semelhança com os vizinhos de
muro é o terreno. A casa ampla e solar não foi criada para punir. Ao invés de
agentes do Deap (Departamento de Administração Prisional), a organização será
responsabilidade dos voluntários, não só da Igreja Católica, mas de diversas áreas. São
advogados, médicos, dentistas, psicólogos, professores de música e yoga,
confeiteiros, gente que acredita que para resolver a violência das ruas é
preciso mudar a realidade do cárcere.
“Aqui os presos usarão suas roupas,
serão chamados pelos seus nomes ou como recuperandos. E no lugar da solitária
poderão resgatar seu equilíbrio na capela, se quiserem”, diz Leila, enquanto
trabalha na finalização do edifício.
A rotina será rígida. São os presos que
serão os responsáveis pela segurança e pela limpeza. Às seis da manhã eles
levantam, arrumam suas camas (sim, eles têm camas), fazem as orações, tomam
café e iniciam as tarefas do dia, que só termina às 22h. É requisito básico que
todos trabalhem e estudem. Ao longo desse período também participam de
palestras de valorização humana, oficinas, atos religiosos, lazer e descanso.
“As pessoas sempre nos perguntam se é o
voluntariado que reduz o preço das Apacs. Digo que sim. Também não há gastos
com agentes penitenciários e terceirizações de serviços. Utilizamos a mão de
obra dos recuperandos. Mas não podemos esquecer uma questão central. Não há
corrupção. O valor pago pelos presos comuns no Brasil é muito questionável. Se
eles não recebem assistência jurídica, médica, alimentação adequada para onde
vai tanto dinheiro?”, questiona Valdecir Antônio Ferreira, presidente da FEBAC
(Federação das Apacs do Brasil).
As leis
da Apac
Os mandamentos apaquianos são maiores que os de Moisés. Doze leis
procuram reverter o exemplo fracassado das penitenciárias comuns fazendo
justamente o contrário – ou na provocação de Leila, “cumprindo a risca a Lei de
Execuções Penais”.
As Apacs buscam espiritualidade –
independentemente de crença, por isso a cor azul. Fortalecem os elos
familiares. São permitidas ligações uma vez por dia, cartas sempre que desejado
e as famílias são convidadas para todas as comemorações. Outro estímulo é a empatia. Na crença de que se aprenderem sobre
a ajuda mútua é mais difícil prejudicar alguém. O trabalho é importante, não
fundamental. No regime fechado é incentivada a recuperação emocional do
indivíduo, no semiaberto a profissionalização, e no aberto, a inserção social.
Segundo pesquisas da FEBAC, 98% dos
recuperandos, cerca de 3.500 pessoas, vieram de famílias completamente
desestruturadas. A maioria vê o pai e a mãe como figuras deturpadas. “Na raiz
do crime vamos encontrar sempre a experiência da rejeição”, defende Valdecir.
“Essa é uma visão comum para quem trabalha com o sistema prisional. Nós
costumamos dizer que os presos que recebem sacolinhas com comidas e produtos de
higiene dos seus familiares se recuperam. Na prática, são os que têm cuidado e
amor. Tem para quem voltar”, complementa Leila.
Valdecir dedicou 33 anos da sua vida às
Apacs. Conta que já recebeu presos de alta periculosidade, integrantes de poderosas facções e os resultados sempre foram
positivos. “Fizemos uma pesquisa com mil presos e constatamos que 85% querem
mudar de vida. Então, acreditamos que as Apacs poderiam ser reproduzidas para
abraçar toda essa massa sedenta por oportunidades. Mas não se cria Apac por
decreto. Ela exige que a sociedade civil organizada tome consciência do
problema e procura solucioná-lo, além de governantes parceiros que apoiem a
ideia de prisões dignas. O que seria preciso? Mudar a nossa cultura”.
Newton Antonio de Almeida, 40 anos, sabe
bem de qual cultura fala Valdecir. Preso por tráfico,
ele ficou três anos e oito meses no Presídio Masculino de Florianópolis e há
dez mudou de vida, quando foi contratado como funcionário da Pastoral
Carcerária. “Poucos tiveram minha chance. Não é novidade que as cadeias não
ressocializam. Na verdade, tiram o pouco que tu tem. Mas quem se opõe? Bandido
bom é pobre morto”, afirma. Para ele, a população não quer Justiça, quer
vingança. “Que o preso sofra, passe frio, fome, apanhe. E não percebe que toda
essa dor, essa violência irá para ruas. Se essa lógica funcionasse seríamos um
país muito pacífico. Você não acha?”
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