DIÁRIO DE CLASSE:
O símbolo
Leviatã: o quanto de não dito há nas palavras da operação "lava jato"
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Vejam vocês, queridos leitores e leitoras, como são as coincidências
nesta nossa era de circulação instantânea e acelerada de informações. Um carro
se movimenta no trânsito caótico de Porto Alegre ao final da tarde. Bem
distante dali, na sufocantemente encalorada Ribeirão Preto, um outro automóvel
tenta se deslocar em meio à lentidão do tráfego. Envolvidos pelo tédio que se
instala — num sentimento de situação comum aos dois condutores —, ambos
procuram sintonizar alguma frequência no rádio que permita, ao menos, matar um
pouco do tempo desperdiçado. Ajustam, então, seus respectivos aparelhos na
mesma FM que veicula notícias sobre a política nacional. Encontram, ali, uma
repórter relatando eventos da mais nova operação que a Polícia Federal
deflagrou como uma das ramificações da festejada "lava jato" (sic). Eis que, ao final, a repórter tenta explicar para os seus ouvintes o
fundamento do nome dado à operação: Leviatã.
Segundo ela, o epiteto seria uma referência — homenagem?! — ao filósofo
Thomas Hobbes, “quando este afirmou que o homem é
o lobo do homem”.
Não é de hoje que os investigadores ligados de alguma forma à "lava
jato" (sic) dão demonstrações públicas de rigor
intelectual ao dar nomes às suas operações. Erga omnes, alétheia, catilinárias foram algumas
das palavras sofisticadas utilizadas pelos doutos. Isso, certamente, é algo
alvissareiro. Talvez, seja inclusive um sintoma de que nossos programas de
pós-graduação, em nível de mestrado e doutorado, estejam produzindo algum
impacto também na formação desses profissionais. Sem embargo, não deixa de ser
interessante observar a ginastica intelectual feita por repórteres e
comentaristas políticos para tentar explicar e justificar o emprego de tais
termos para a malta. Impossível não lembrar da célebre metáfora atribuída a
William Bonner que retratava o personagem Homer Simpson como o arquétipo do
espectador médio.
De todo modo, não há como saber se o problema está na fonte que fornece
tais justificativas para os jornalistas ou na falta de talento dos
profissionais que se ocupam de traduzir essa sofisticada linguagem para as
massas. O fato é que os discursos que se sobrepõem para discutir essa intricada
questão gera algumas situações interessantíssimas.
A mais recente é uma delas. Leviatã, como se sabe, não é uma palavra
inventada por Hobbes. Foi usada por ele para dar nome à sua obra mais conhecida
e comentada. Todavia, já existia no léxico religioso/político muito antes de
Hobbes ter nascido. Sua origem está relacionada à Bíblia hebraica, sendo que a palavra aparece
nos livros sapienciais, mais
especificamente no de Jó. Quer ela significar uma espécie de monstro
(discute-se se sua aparência seria mais próxima à de um crocodilo ou a de um
dragão) representativo do mal que ameaça toda a criação. Nenhum ser humano
seria capaz de enfrentá-lo. Apenas o próprio Deus o teria derrotado,
confinando-o nas águas. O Leviatã, junto como o Beemot, é criatura com
a qual o Deus ambíguo do Antigo Testamento procura assustar os
humanos (vale lembrar que esse Deus hora é descrito como o Deus da
bondade, hora como o Deus que repele as faltas de seus fiéis com o terror mais
implacável. Ele deve ser adorado, mas, também, temido).
No capítulo 41 do Livro de Jó, encontramos a seguinte descrição do
Leviatã: “Seus espirros lançam faíscas, e seus olhos são como a cor rosa da
aurora. De sua boca irrompem tochas acesas e saltam centelhas de fogo. De suas
narinas jorra fumaça, como de caldeira acesa e fervente. Seu bafo queima como
brasa, e sua boca lança chamas. Em seu pescoço reside a força, e diante dele
dança o terror. Os músculos do seu corpo são compactos, são sólidos e imóveis.
Seu coração é duro como rocha e sólido como pedra de moinho” (Jó 41, 10-17).
Como afirma Harold Bloom, “Beemot e Leviatã representam, nitidamente, a
tirania santificada da natureza em relação ao homem”[1]. Não é por simples acaso que os dois,
Beemot e Leviatã, estão presentes na obra de Hobbes. Os antagonistas de Hobbes,
contra os quais ele construiu seu pensamento político, eram pessoas letradas
vinculadas à igreja e versadas em Teologia. Daí que as metáforas por ele
utilizadas para descrever sua fórmula política fossem retiradas desse contexto
religioso. Todavia, é possível notar, no emprego desses símbolos, uma flagrante
ironia: enquanto a Bíblia retratava o Leviatã
como um ser monstruoso que foi derrotado por Deus (Deus protege), mas que pode
voltar a atacar os humanos caso coloquem à prova a ira divina (Deus castiga);
para Hobbes, um Estado que se impõe como Leviatã é a única forma de os
seres humanos sobreviverem ao Estado de Natureza. Portanto, a salvação não está
em confiná-lo nos oceanos, mas, sim, em soltá-lo e deixar que reine sobre a
terra.
Nessa medida, o Leviatã é a representação lírica do Estado Absolutista
na forma arquitetada por Thomas Hobbes. Um Estado de poder ilimitado em favor
do qual os súditos transferem toda a sua liberdade na expectativa de que terão,
como contrapartida, a garantia de segurança e preservação da vida.
Ou seja, a assertiva “o homem é o lobo do homem” não é um derivativo da
palavra Leviatã. Na verdade, essa frase aparece no contexto da antropologia
hobbesiana que descreve os seres humanos como propensos à destruição mútua. Em
Estado de Natureza, prevalece a situação de guerra de todos contra todos, de
modo que cada ser humano vive o constante medo de ser vitimado por
uma morte violenta. Deixados à mercê de sua liberdade, os seres humanos,
individualmente ou em bandos, matam-se entre si. Para se livrarem do medo
constante, devem entregar sua liberdade para o Soberano, e este, enquanto
personificação do Estado Leviatã, deve, em contrapartida, garantir a segurança
de todos. Por isso, Leviatã não significa que “o homem é o lobo do homem”. Ao
contrário, em razão do homem ser o lobo do homem, organizar-se em bandos que
produzem constantes conflitos em Estado de Natureza, sua única chance de
sobreviver em paz (controlando racionalmente o medo) é entregando-se às forças
do Estado Leviatã.
O divertido disso tudo é que, consciente ou inconscientemente, aqueles
que nomearam essa mais nova operação como Leviatã conseguiram significar, com
invejável precisão semântica, a transformação do nosso sistema de Justiça em
tempos de "lava jato" (sic). Prisões
preventivas que se arrastam por mais de um ano e se mostram verdadeiras
antecipações da pena; conduções coercitivas determinadas ao arrepio da lei;
vazamentos estratégicos de delações premiadas, entre muitas outras coisas,
mostram que apenas de maneira muito precária é que podemos dizer que
ainda hoje temos a integralidade de um Estado de Direito entre nós. Ao contrário,
a impressão é que o Leviatã foi solto e pode, a qualquer momento, entrar nas
nossas casas para efetivar uma busca e apreensão ou uma condução coercitiva.
Vale frisar: o monstro Leviatã representa a metáfora absolutista a ponto
de o súdito trocar a sua liberdade — e, no limite, tudo que possui — por
segurança. Ups: a Polícia Federal
tem razão. Não é isso que estamos fazendo? Estamos vivendo em uma “democracia
delegativa” similar àquele de que fala Guillermo O’Donell. Uma paradoxal
“democracia hobbesianista”. Trocamos até nossa liberdade e nossas garantias
constitucionais para apoiar, com discursos que atropelam o (nosso) Direito em
favor da moral, a hobbesianização de nosso país. Devemos lembrar, também, uma
outra coisa: o Leviatã pode proteger mesmo os pequenos animais... Mas, quando
tem fome, devora-os.
Portanto, sem querer querendo, como diria o filósofo contemporâneo
Chaves do Oito, a PF acertou. Veja-se como um nome pode dizer tanta coisa. O não dito é sempre maior do que o dito. O implícito é
gritante.
P.S. Ficaríamos muito decepcionados se a palavra Leviatã tivesse
sido utilizada para dar nome à operação em razão de um dos envolvidos chamar-se
Lobo, quer dizer, Lobão. Seria como dar o nome de Estagirita a uma operação que
envolvesse alguém chamado Ari.
Rafael Tomaz de Oliveira é
advogado, mestre e doutor em Direito Público pela Unisinos e professor do
programa de pós-graduação em Direito da Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp)
e da Faculdade Guanambi (BA).
Lenio Luiz Streck é
jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do
escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.
Revista Consultor Jurídico, 18 de fevereiro
de 2017, 8h05
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