Matriz Energética:
Belo Monte – A sociedade brasileira não tem consciência do seu custo
social e ambiental. Entrevista especial: Com Sônia Magalhães. IHU On-Line
Entre todas as violações geradas pela construção de Belo Monte nos
últimos cinco anos, quando as obras foram iniciadas no Rio Xingu, a
maior delas, “a partir da qual várias outras foram desencadeadas, eu diria que
é o não reconhecimento da população tradicional”, diz a antropóloga Sônia
Magalhães, membro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC, que
coordenou, em conjunto com a professora Manuela Carneiro da Cunha, o relatório “Estudo sobre o deslocamento compulsório de ribeirinhos do rio
Xingu provocado pela construção de Belo Monte”, concluído
no final do ano passado. Este estudo será publicado pela SBPC nas próximas
semanas. “O fato de não haver esse reconhecimento gerou uma cadeia de violações
de direitos que até o momento não foi sanada”, diz a pesquisadora.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por telefone, Sônia explica que a “recomendação fundamental” do
relatório produzido pela SBPC para resolver os conflitos gerados pela
construção da hidrelétrica de Belo Monte é a necessidade de reconhecer a
condição dos ribeirinhos como tais, o que tem sido violado pelo Plano Básico
Ambiental – PBA. “O reconhecimento dessa condição não é da empresa Norte Energia nem do Ibama. Ao contrário, o reconhecimento é do
indivíduo e da sociedade da qual ele faz parte, ou seja, dos ribeirinhos. Essa
é a recomendação pilar do estudo da SBPC”, frisa.
Sônia lembra que a obra de Belo Monte, desde o início de sua
construção, tem sido “marcada pelas condicionantes”, as quais vêm se acumulando
ano após ano. “Um bom diagnóstico do que são os problemas de Altamira é o número de ações civis públicas que
estão em vigor atualmente. No caso da cidade, entre todas as ações civis, diria
que a principal delas diz respeito ao esgotamento sanitário. (…) Segundo o
licenciamento previsto, antes de a barragem entrar em operação, deveria ter
sido feito um sistema de tratamento de esgoto sanitário, antes de os dejetos
serem lançados no rio, mas isso não foi feito. Portanto, a barragem entrou em
operação sem que isso tivesse ocorrido, o que gerou um problema extremamente sério
na cidade, com repercussões sobre a qualidade da água”. E adverte: “Hoje, em
Altamira, há uma situação de emergência pública”.
Sônia Magalhães | Foto: UFPA |
Sônia Magalhães é graduada e mestra em Ciências Sociais pela Universidade
Federal da Bahia – UFBA, doutora em Antropologia pela Universidade Federal do
Pará – UFPA e em Sociologia pela Université Paris 13. Atualmente leciona na
UFPA, onde está vinculada ao Núcleo de Ciências Agrárias e Desenvolvimento
Rural. Também leciona nos Programas de Pós-Graduação em Ciências Sociais,
Pós-Graduação em Agriculturas Amazônicas e Pós-Graduação em Gestão dos Recursos
Naturais e Desenvolvimento Local na Amazônia.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC divulgou recentemente um
relatório intitulado “Estudo sobre o deslocamento compulsório de ribeirinhos do
rio Xingu provocado pela construção de Belo Monte”, no qual aponta que foram
feitas novas violações de direitos dos ribeirinhos expulsos por conta de Belo
Monte. Em que consistem essas violações?
Sônia Magalhães – A violação de direitos dos ribeirinhos é muito anterior ao
estudo da SBPC, o qual vem constatar, mais uma vez, que existe essa violação.
Com base no conhecimento dos pesquisadores que fazem parte do grupo, o estudo
aponta uma série de impropriedades do ponto de vista técnico, social e
jurídico. Se pudéssemos eleger uma violação – não que seja a única -, a partir
da qual várias outras foram desencadeadas, eu diria que é o não reconhecimento
da população tradicional. O fato de não haver esse reconhecimento gerou uma
cadeia de violações de direitos que até o momento não foi sanada.
Os
ribeirinhos, mesmo morando historicamente nessas áreas, não foram reconhecidos
como tais. Também não foram levados em conta os aspectos sociológicos, e os
ribeirinhos, literalmente, foram expulsos de suas áreas sem nenhum diálogo, sem
nenhuma medida que tentasse, de alguma forma, minimizar a violência que é um
deslocamento compulsório. Por outro lado, há várias questões técnicas relativas
à fauna, à flora e ao ecossistema em geral que repercutem sobre o modo de vida
e as relações sociais dos ribeirinhos, porque eles têm uma relação especial com
o território.
Então, o estudo aponta um conjunto de
recomendações fundamentais para que os ribeirinhos consigam ter condições de
reestruturarem o seu modo de vida. A primeira recomendação que aparece como
preâmbulo do relatório é o reconhecimento da condição de ribeirinho, o qual é
prerrogativa dos próprios ribeirinhos. Ou seja, o reconhecimento dessa condição
não é da empresa Norte Energia nem do Ibama. Ao contrário, o reconhecimento é
do indivíduo e da sociedade da qual ele faz parte, ou seja, dos ribeirinhos. Essa
é a recomendação pilar do estudo da SBPC. A partir
daí há recomendações relativas à reterritorialização dos ribeirinhos
sumariamente desterritorializados, porque foram expulsos. Eles não tiveram
nenhum protocolo de deslocamento.
Os ribeirinhos, mesmo morando
historicamente nessas áreas, não foram reconhecidos como tais
IHU On-Line – Para quais
regiões do Pará eles foram deslocados?
Sônia Magalhães – Eles tiveram que procurar outro lugar qualquer, como as
casas dos parentes ou dos amigos. Muitos deles, apesar de serem ribeirinhos,
também tinham casas na cidade, porque essa é uma característica das populações
tradicionais da Amazônia, mas alguns deles foram, inclusive, deslocados de suas
casas da cidade. Antigos pescadores estão se empregando em fazendas como
vaqueiros e há uma espécie de diáspora, intensa, que, naquele momento em que
fizemos o estudo, era difícil de quantificar. Apesar disso, conseguimos
localizar tanto redes de localidade quanto de parentescos e conseguimos
identificar aqueles que permaneceram em Altamira e outros que migraram.
IHU On-Line – Uma das
conclusões do relatório da SBPC é sobre a maneira como a Norte Energia está
conduzindo o processo dos ribeirinhos que saíram das suas localidades. Pode nos
falar como tem sido feito esse processo? A Norte Energia tinha algum tipo de
responsabilidade em relação aos ribeirinhos após a construção de Belo Monte?
Sônia Magalhães – Não foi feito um acordo entre ribeirinhos e a Norte
Energia, mas existe uma legislação que diz respeito ao licenciamento ambiental,
a qual tem um instrumento chamado Plano Básico Ambiental – PBA,
no qual não está explicitamente colocada a questão dos ribeirinhos pelo simples
fato de que eles não foram reconhecidos como tais, ao contrário, eles foram
invisibilizados. No entanto, o próprio PBA aponta que todos os deslocados por
conta do empreendimento devem ter seus modos de vida recompostos. Desse ponto
de vista, o Plano está sendo violado, e os instrumentos do licenciamento não
estão sendo cumpridos.
IHU On-Line – Quais são os
argumentos utilizados para não se reconhecer os ribeirinhos como tais?
Sônia Magalhães – Os ribeirinhos se autoidentificam, e a população de
Altamira sabe quem são os ribeirinhos, vivem na beira do rio e os conhece pelo
nome. Alguns ribeirinhos, inclusive, são casados com indígenas, e a sociedade
local os reconhece. Além disso, eles existem historicamente, estão presentes na
bibliografia sobre a região e toda a sociedade altamirense interage com eles.
Mas mesmo assim os ribeirinhos não aparecem no licenciamento ambiental.
A terceira situação extremamente
grave, que envolve os municípios de Altamira, Vitória do Xingu e Senador José Porfírio,
é a redução do estoque pesqueiro
IHU On-Line – É possível
contabilizar quantos ribeirinhos já foram deslocados?
Sônia Magalhães – Aproximadamente 800 famílias. Há levantamentos feitos pela Norte Energia, mas não posso comentá-los porque
não tenho conhecimento desse material. Nós o solicitamos, mas não conseguimos
acessá-lo.
IHU On-Line – Qual é a situação
em Altamira desde que Belo Monte recebeu a licença de operação?
Sônia Magalhães – O licenciamento de Belo Monte é marcado pelas condicionantes, as
quais vêm se acumulando desde a licença prévia, a licença de instalação e
depois a de operação. Essas condicionantes dizem respeito a várias áreas, ao
próprio deslocamento urbano, às impropriedades relativas às áreas que foram
deslocadas e foram inundadas em razão do comportamento do lençol freático, até
relações relativas à saúde. Um bom diagnóstico do que são os problemas de Altamira
é o número de ações civis públicas que estão em vigor atualmente. Entre todas
as ações civis relativas à cidade de Altamira, diria que a principal delas diz
respeito ao esgotamento sanitário. Altamira, como
várias cidades do Brasil e da Amazônia, não tinha tratamento de esgoto
sanitário e, portanto, todo o esgoto era lançado diretamente no rio. Isso por
si já é algo problemático, mas era parcialmente aceitável porque o Rio Xingu tem
uns períodos de vazão muito extremos, acima de 20 mil metros cúbicos por
segundo, além de ter vazões médias bastante altas, o que garantia a circulação
da água do rio e, por consequência, gerava uma espécie de “tratamento natural”
do esgoto, porque o rio levava os dejetos da cidade de Altamira.
Impactos:
Acontece
que a barragem transformou toda essa área do rio onde o esgoto sanitário de
toda a cidade é jogado até hoje, de tal modo que a água passou a ficar parada
em frente à cidade de Altamira, sem nenhuma renovação. Portanto, teve-se,
subitamente, em um rápido espaço de tempo, um acúmulo de resíduos e dejetos,
que aumentou rápida e acentuadamente a poluição da água, reduzindo a sua
qualidade e oxigenação. Essas são consequências observáveis em todos os
reservatórios, mas no caso de Altamira a situação se agravou porque gerou
também um esgotamento sanitário.
Os impactos de Belo Monte são
irreversíveis e, até agora, incontornáveis
Segundo
o licenciamento previsto, antes de a barragem entrar em operação, deveria ter
sido feito um sistema de tratamento de esgoto sanitário, antes de os dejetos
serem lançados no rio, mas isso não foi feito. Portanto, a barragem entrou em
operação sem que isso tivesse ocorrido, o que gerou um problema extremamente
sério na cidade, com repercussões sobre a qualidade da água e sobre a saúde de
toda a população.
Redução da
vazão do Rio Xingu:
A segunda situação extremamente
grave, que não ocorre no município de Altamira, mas no município de Vitória do
Xingu, diz respeito à outra parte do rio que foi represada: como o rio, além de
ser represado, foi desviado perenemente, houve uma redução de vazão num trecho
de 100 quilômetros do rio. Em geral, a vazão do rio tem uma variação que vai ao
máximo, algo em torno de 28 a 30 mil metros cúbicos por segundo. Como essa
vazão foi reduzida à vazão mínima já registrada historicamente, todo esse
trecho abaixo da barragem de Pimental teve sua vazão reduzida. A população
que mora nesse trecho em que houve a redução da vazão, por conta disso, passou
a enfrentar uma situação de alteração brusca em seu território, ou seja, essa é
outra forma de desastre sobre o território. Essa população ribeirinha não tem
nenhuma previsão de como serão minimizados os efeitos que estão acontecendo e
tampouco tem alternativas. Isso inclui tanto a população ribeirinha, como outra
fração importante de população não ribeirinha e que também mora abaixo da barragem
de Pimental, no trecho de vazão reduzida.
Redução da
pesca:
A terceira situação extremamente
grave, que envolve os municípios de Altamira, Vitória do Xingu e Senador José Porfírio,
é a redução do estoque pesqueiro. Nessa região existe uma população muito
grande de pescadores, e a pesca, além de ser uma importante fonte comercial de
geração de renda, é, sobretudo, a principal fonte de segurança alimentar.
Portanto, hoje existe uma população de pescadores sem peixe, e uma área de
cerca de 250 quilômetros sem peixes. Essa situação é consequência não apenas da
inundação, mas da redução da vazão, que também repercute sobre os berçários de
peixes, sobre área de piracema e áreas de alimentação dos peixes.
Essa
situação dos pescadores também tem um efeito em cadeia: repercute sobre a
situação das famílias e, como consequência, sobre a situação do próprio
comércio, da circulação de mercadorias de modo geral, porque esses pescadores
estão sem a sua atividade. Tanto os ribeirinhos como os pescadores necessitam,
com urgência, um apoio de transição – um apoio financeiro -, pois eles não têm
onde morar, não têm como se alimentar e estão em uma situação emergencial.
Hoje, em Altamira, há uma situação de emergência pública.
IHU On-Line – Vislumbra
possibilidades de reverter essa situação de impacto tanto para ribeirinhos
quanto para a população em geral depois da operação de Belo Monte?
A sociedade brasileira não tem
consciência do que significa o custo social e ambiental de uma barragem
Sônia Magalhães – Os impactos de Belo Monte são irreversíveis e, até agora,
incontornáveis. Além de serem extremamente trágicos – porque considero que um
desastre ambiental é uma tragédia –, eles não recebem a atenção que deveriam
receber. Há grandes questões que devem ser levadas em consideração. A primeira
delas é que a sociedade – nós brasileiros – deve levar em consideração o custo
social e ambiental de uma grande barragem, seja Belo Monte ou outra qualquer.
Creio que a sociedade brasileira não tem consciência do que significa o custo
social e ambiental de uma barragem. Quando digo que não tem consciência, quero
dizer também que as perdas – sociais, ambientais, humanas – decorrentes de uma
barragem são irrecuperáveis, são uma tragédia.
Uma
metáfora que talvez possa fazer entender a situação é a de uma grande enchente:
ela destrói tudo. É evidente que as pessoas buscam se recompor, mas é
necessário muito apoio para que elas se recomponham e muitas delas jamais vão
se recompor. Logo, é uma tragédia que não tem aparato técnico que a controle, porque
a dimensão das perdas não é controlada tecnicamente. Esse é o primeiro ponto.
O segundo aspecto é que, mesmo
sabendo disso, poderiam ser tomadas algumas medidas que fizessem a tragédia
suportável, pois é possível oferecer ao ambiente e às populações humanas meios
para lidar com ela e, no caso de Belo Monte,
isso não existe. Posso afirmar que não conheço nenhum exemplo de barragem em
que essas condições tenham sido oferecidas. As mínimas condições que foram
obtidas foram resultado de muita luta e resistência em um conflito onde há uma
assimetria de poder inimaginável, isto é, uma assimetria que talvez não vejamos
em outras situações de conflitos, como, por exemplo, no caso que estamos
traçando, que é a questão da invisibilização de uma população inteira, ou seja,
de dizer que ela não existe, de não reconhecê-la.
Não acredito que Belo Monte venha,
em algum momento, a recuperar ou restaurar aquilo que foi perdido pelas
populações ribeirinhas. Não estou nem me referindo às questões materiais, mas
culturais e simbólicas: essa é uma perda que não tem reposição e nós precisamos
ter consciência disso: de que estamos impondo a uma parte da nossa sociedade
uma perda que não tem volta.
IHU On-Line – Deseja
acrescentar algo?
Sônia Magalhães – O esforço que a SBPC fez foi interessante e pode
contribuir muito para se refletir sobre os efeitos das políticas públicas no
Brasil, porque as grandes barragens são um caso-limite, mas há outros. A SBPC fez
um esforço de mostrar para a sociedade esse caso-limite, ou seja, qual é o
significado da construção de uma barragem e de dar uma contribuição a essa
população, de dar visibilidade a essa população e à violação dos seus direitos,
e de contribuir com a nossa competência, que é a arma de que dispomos nesse
momento, que é a competência de analisar e apontar o que está acontecendo e
indicar algumas soluções, apontar encaminhamentos para soluções possíveis para
que as populações sobrevivam melhor a essa tragédia.
Nós precisamos ter consciência disso:
de que estamos impondo a uma parte da nossa sociedade uma perda que não tem
volta
Tenho a esperança de que estudos como
esse revelem a dimensão dessa tragédia, ao mesmo tempo que contribuam para esse
momento emergencial, que seja uma demonstração para situações futuras, não do
que deve ser feito, mas exatamente do que não deve ser feito. Eu diria que o
estudo da SBPC é uma espécie de “não às
hidrelétricas”.
(EcoDebate, 11/01/2017)
publicado pela IHU On-line,
parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da
informação.
[IHU
On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do
Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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