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Como a coleta invasiva de dados
pessoais, sob o Capitalismo de Vigilância, elimina direitos; impõe
comportamentos e torna totalitário o poder das corporações. Só escapa o 1% que
comanda a máquina.
Causou pequeno furor na Internet, recentemente, a notícia de que o
Nubank poderia interromper as suas atividades no Brasil. O Nubank é uma dessas
fintech, empresas de finanças que utilizam de ferramentas de alta tecnologia,
principalmente big data, para realizarem
suas operações de crédito e que também oferecem uma “experiência tecnológica” a
seus clientes, como fazerem tudo pelo celular. O motivo do fechamento seriam
mudanças na regulação do mercado de cartão de crédito propostas pela equipe
econômica do famigerado Michel Temer, em especial o encurtamento no prazo de
pagamento a ser feito aos lojistas pela financiadora quando alguém compra
usando o cartão. O Nubank, choraram seus executivos, não teria caixa para
antecipar pagamentos e não poderia manter práticas que o diferenciam de seus
concorrentes, como a isenção de cobrança de anuidades. Por isso também a grita
dos clientes.
Mas o ponto aqui não são as agruras dos portadores de cartões Nubank, e
sim o quanto elas podem falar sobre privacidade. O direito de escolher entre
ser totalmente transparente ou manter certos assuntos longe do escrutínio
alheio tende a ser cada vez mais um privilégio dos ricos.
No caso acima, mantêm a privacidade aqueles com orçamento livre o
suficiente para pagar a anuidade do cartão, ou que gastam tanto no crédito que
gozam de benefícios dos bancos tradicionais. O cliente Nubank, assim que pede
seu cartão de crédito, oferece poucos dados (e-mail, nome, CPF), mas é convidado
a integrar seu perfil do Linkedin ao cadastro. Essa integração aumentaria a
velocidade de resposta do Nubank ao seu pedido. É a partir do CPF e dos dados
coletados em redes sociais que a empresa vai checar se o cliente é quem
realmente diz ser e qual sua capacidade de crédito, que está relacionada não
somente ao seu cadastro fiscal, mas também à sua inserção na sociedade, ou
seja, o quem faz, onde trabalha, quem são seus amigos etc. Trata-se de uma
escolha emblemática: os que podem pagar a anuidade podem ser mais obscuros ao
banco; os que precisam economizar umas dezenas de reais por mês oferecem sua
transparência.
O exemplo é até certo ponto trivial, uso-o aqui não por ser contundente,
mas por convocar ao debate de uma questão mais ampla. Trata-se de uma
investigação que todo banco faz, no entanto é uma amostra emblemática de uma
mudança mais complexa e que tem a ver com o capitalismo de vigilância, uma nova
lógica de acumulação do capitalismo. “Essa nova forma de capitalismo
informacional pretende prever e modificar o comportamento humano como meio para
a produção de lucros e o controle do mercado”, escreve Shoshana Zuboff, em um
denso artigo chamado “Big Other: surveillance capitalism and the prospects of an information
civilization”
O artigo é um petardo e é prévia para um livro que deve chegar às
livrarias no início de 2017. O capitalismo de vigilância funda-se em
tecnologias como o big data, a extração e
análise de grandes quantidades de dados para análises de mercado. Mas há outros
dois pontos importantes de que Zuboff trata que nos ajudam aqui a mostrar como
a privacidade vai se tornando cada vez mais difícil para os mais pobres.
Um deles é a reflexão que Zuboff faz sobre o futuro dos contratos. No
capitalismo de vigilância, passamos a ser monitorados por dispositivos
informacionais o tempo todo. Eles garantem com muito mais efetividade se
estamos ou não seguindo um determinado comportamento. A tendência seria, então,
de emergência de novas formas contratuais, que ela chama de não-contratos, pois
a forma tradicional desses compromissos legais seria baseada na incerteza e na
confiança. Estas tendem a ganhar um papel secundário no futuro, dando lugar a
um monitoramento maquínico.
Por exemplo, imaginemos um plano de saúde que, como condição para
oferecer preços mais baixos, oferte ao cliente o uso ininterrupto de uma
pulseira de monitoramento cardíaco. Antes, a empresa podia apenas recomendar ao
cliente que se exercitasse três vezes por semanas por pelo menos 30 minutos ao
dia para manter uma vida saudável pelo seu próprio bem. Com a pulseira, a
sincronizar dados com os computadores da empresa diariamente, esta tem como
estar certa de como o cliente se comportou, se fez exercícios ou não,
verificando os batimentos cardíacos. Se o cliente não cumpriu o “recomendado”
então os preços, automaticamente, sobem. O risco da empresa cai
consideravelmente, pois dá preços mais altos aos sedentários, condição que ela
verifica ao vigiar a que velocidade bate o coração do segurado.
Parece claro que aqueles que podem pagar, que têm mais dinheiro, podem
se dar ao luxo de se eximir desse tipo de vigilância pela máquina. Isso é ainda
mais verdade em situações profissionais. A revista TechRepublic publicou um interessante artigo ( sobre o
Mechanical Turk, o site da Amazon dedicado a oferecer trabalho remoto, a ser
feito em casa, por trabalhadores independentes, em troca de micro pagamentos.
São tarefas muitas vezes auxiliares aos sistemas de inteligência artificial das
grandes companhias do Vale do Silício. Incluem trabalhos simples como
classificar fotos, classificação que será usada para “ensinar” sistemas de inteligência
artificial; ou coisas traumatizantes, como assistir centenas de vídeos do ISIS,
incluindo cenas de degolamentos, para definir se se trata de conteúdo impróprio
ou não. Tudo isso por alguns centavos: na imensa maioria dos casos o rendimento
do trabalhador fica abaixo do salário mínimo federal dos EUA, de 7,5 dólares a
hora. O que a revista descreve é um cotidiano exaustivo, em que os
trabalhadores passam o tempo todo conectados, pois o rendimento depende de ser
estar disponível no momento em que a tarefa aparece. Essas são oferecidas
preferencialmente àqueles designados como estando no “master’s level”, mas
ninguém sabe como isso é definido. A vida privada, pessoal, fora do mundo do
trabalho, desaparece, O trabalhador é transparente ao sistema, precisa estar
disponível o tempo todo e abrir seus dados em extensos formulários de
cadastramento. Mas o contratante é obscuro e, muitas vezes, anônimo. A Amazon
coloca-se apenas como dona da plataforma que conecta trabalhadores e patrões.
Outro ponto importante no texto de Zuboff é a ideia que o capitalismo de
vigilância não tem as populações somente como fonte da coleta de informações
comportamentais, informações essas que vão orientar campanhas de marketing,
publicidade e informar a produção de produtos. Aquele que é vigiado é também
alvo de tentativas de orientação de comportamento. Tradicionalmente, a
publicidade já opera dessa forma, busca fazer com que os indivíduos se
comportem de uma determinada maneira que seja interessante aos lucros da
empresa. Mas Zuboff está falando de algo em outro nível, que não opera pelo
convencimento, pela escolha e decisão.
Trata-se de uma prática de controle da ação dos pontos em uma rede – as
pessoas, no caso. Entende-se ação aqui como uma operação informacional: um like no Facebook, um clique que
confirma a compra em um site, montar uma página na Internet em que alguém
oferece seus serviços profissionais. “Na lógica do capitalismo de vigilância
não há indivíduos, somente o organismo de escala mundial e todos os minúsculos
elementos dentro dele”, escreve ela. O controle aí significa a limitação das
escolhas ao mínimo ou a opções que não fazem muita diferença. A Netflix lhe
oferece opções de filmes que parecem infinitas, a maioria dentro do mesmo
padrão hollywoodiano e todas sendo comercializadas pelas mesmas distribuidoras
do sistema. Você pode optar por não utilizar o dispositivo de rastreamento que
a seguradora quer instalar em seu carro, só vai ter que pagar o dobro.
Na pirâmide social da atualidade – e que, em condições normais, tende a
um afunilamento crescente – apenas o 1% que está no topo pode optar pelo
privilégio da total obscuridade à rede. O grau de escolha sobre privacidade
parece ir diminuindo quanto mais se aproxima da base. Inclusive o nível mais
inferior dessa pirâmide, hoje desconectado, é objeto de desejo das grandes
empresas de tecnologia, que lançam projetos de inclusão digital – como o Free
Basics, do Facebook – de olho nos dados e operações informacionais que essa
população pode produzir.
Nessa enorme parte do meio da pirâmide, para sobreviver, ou apenas para
termos um pouco mais de conforto momentâneo, somos a todo tempo convidados a
nos tornarmos mais transparentes. Mas essa transparência, ao mesmo tempo,
aumenta nossa vulnerabilidade e o poder do outro. Os efeitos não são só
individuais, a invasão de uma intimidade, como o sentido comum da expressão
“perda da privacidade” pode nos convidar a pensar. Trata-se fundamentalmente de
uma questão de poder.
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